“Morde a língua, rapaz, morde a língua”. Recordo esta expressão do meu professor de português da (então) escola primária, nuns idos há muito idos, de cada vez que algum de nós, jovens cábulas, proferíamos aquilo a que ele chamava “uma calinada”. Recordo o pavor que me provocava o sentido literal da frase, o único que entendia, antecipando a dor provocada pelos meus próprios dentes espetados na minha língua indefesa.

E cuidava por isso com especial cuidado em evitar erros de português, fáceis de cometer por quem só há cerca de nove anos começara a manejar a fala, o mais essencial dos instrumentos, usando um idioma que evolui desde os seus primórdios latinos, há mais de dois mil anos. “Morde a língua”: chegava a passar horas agarrado à gramática e ao dicionário – sim, estudava o dicionário, página a página, examinava cada palavra, levando ao inevitável gozo dos meus coleguinhas -, tudo para evitar ferir a taramela (forma jocosa de referência ao músculo fonador que aprendi no estudo do dicionário, imagine-se…).

Vem isto a propósito do uso da língua portuguesa no espaço público por quem tem responsabilidade e deve servir de exemplo. “A minha pátria é a língua portuguesa”, escreveu Bernardo Soares, frase que decerto ninguém ouviu antes. Ironizo, claro, e estrago a ironia ao assinalá-la porque, em tempos intolerantes como os que vivemos, qualquer ambiguidade é perigosa. Ora sendo a língua portuguesa a pátria de nós todos, como quis o desassossegado Soares, que dizer dos homens públicos de todos os quadrantes (repito: de todos os quadrantes) que a usam descuidadamente ou com ignorância?

Proponho um silogismo: A língua portuguesa é a minha pátria. Eles maltratam a língua portuguesa. Logo, eles maltratam a minha pátria. QED.

Há alguns dias, um Ministro do governo português, discursando na Assembleia da República, abusou: conjugou o pretérito-mais-que-perfeito do verbo intervir dizendo “interviram” em vez de “intervieram”; e repetiu duas vezes “tenhemos”, assassinando em directo e a cores o presente do conjuntivo do verbo ter. E se um Ministro, ainda por cima de um pelouro da Educação, usa assim a língua portuguesa, “tenhamos” coragem para “intervir” (uma ajuda para quem tem dificuldades com este verbo: a terminação é sempre a do verbo vir). Entendam-me bem, não se trata de crucificar ninguém (outra figura de estilo) mas sim de chamar a atenção para evitar que, consolidando-se com o passar do tempo, os simples erros, lapsus linguae, momentâneas distrações, se tornem regra, consumando a traição à língua portuguesa. E não exagero, acreditem: o exemplo do Ministro, flagrante e difícil de desculpar face ao pelouro que tutela, não é único. Nem os dislates – as “calinadas” – são exclusivo deste ou de qualquer governo, antes pelo contrário, a sua produção é independente de ideologias.

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São inúmeros os exemplos de erros linguísticos graves, porque reiterados, perpetrados por responsáveis políticos. Quantas vezes os ouvimos dizer: fui “de encontro” às ideias dele, sem que o encontrão levasse a um ajuste de contas entre os protagonistas? Ou, “apesar de não haverem razões”, o famigerado e recorrente mau uso do verbo haver no plural? Ainda “aonde estás?”, como se alguém, estando, estivesse ao mesmo tempo a dirigir-se para onde está? “Vim há 2 anos atrás”, como se pudesse ter sido há 2 anos à frente? E o cada vez mais frequente, “eles tão cá”, “tamos juntos”? etc. Quantas vezes?

Já ouvi defender que um governante que comete erros graves de português, sobretudo da área da educação, não deve poder continuar governante. Não me parece justo ir tão longe; mas importa que quem comete erros desta natureza se dê conta deles – pedindo por exemplo aos colaboradores que lho façam saber -, tendo a humildade de os admitir e corrigir; quiçá explicando com didactismo a razão do erro, assumindo assim modestamente a condição de humano e contribuindo para o esclarecimento dos seus concidadãos. Mas quantas vezes isso sucede? Com raras excepções, um ministro, só por o ser, cuida-se acima da populaça, pairando alado sobre a regra que a todos se impõe, desobrigado de assumir os seus erros.

Soares: «Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa”. E acrescenta: “Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m’a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»

O erro de português é uma praga omnipresente, quer na oralidade quer na escrita (até mais nesta, na ortografia, na sintaxe e até, talvez sobretudo, no sentido das palavras). E não são só os políticos que os cometem, eles repetem-se nos mais diferentes meios, das televisões (os célebres oráculos) aos jornais e às redes sociais (ai as redes sociais), produzidos por jornalistas, escritores, publicistas, futebolistas, gestores, “famosos” em geral, professores… Sim, professores. Escrito à mão na caderneta pela professora do filho de um amigo, aluno do 4º ano de um colégio privado: “Preciso de falar consigo à cerca do seu filho”. A cerca que separou pai e professora na conversa em causa tinha o tamanho da indignação do meu amigo.

Nada disso importaria, contudo, se tantos desmandos não contribuíssem para confundir o comum dos mortais (como se os mortais não fossem todos comuns), levando ao uso cada vez mais incorrecto da nossa língua, à confusão generalizada sobre a forma correcta de falar – “tamos conversados?” -, ou de escrever – “fui descriminado”. E a comunicação simplificada por via electrónica, através das redes sociais e na Internet, tem contribuído para agravar esses erros “grassos” (citação em ciberdúvidas), reforçando e disseminando a ideia de que tanto faz como se escreve ou fala, pois não tem importância.

Mas tem importância e muita. Sabendo-se da íntima relação entre a língua e o pensamento, a banalização destes erros, a sua aceitação tácita e consequente generalização, ao fazer regredir a língua, empobrece o pensamento. Em suma: ficamos, como povo, menos evoluídos, pensamos pior, perdemos terreno na batalha do desenvolvimento. Retrogradamos.

A palavra, escreveu Bernardo Soares, é completa, e o seu uso sem critério trai a função da língua. Trai, afinal, a pátria portuguesa. Usada por responsáveis de todos os quadrantes, educadores por definição ou vocação, trai os portugueses que é suposto educarem pela palavra e pelo exemplo.

“Mordam a língua” meus senhores, sff.