Quando Raul Brandão morreu, Vitorino Nemésio publicou na primeira página do Diário de Lisboa um texto com o título “Alguém”. Vítor Silva Tavares, que hoje faleceu, aos 78 anos, foi a seu modo um outro Alguém que deixará lastro — esse & etc que ele escolheu como título do seu projecto pessoal em jornais e livros: um suplemento cultural que deu nome a uma editora discreta mas influente, nos anos 1970-80.

Quem hoje perdemos não foi só um editor lúcido e competente, mas o conversador fascinante e o “estoriador cultural” de que necessitávamos para repor sentido e verdade a décadas de vida cultural, literária e editorial no pequeno, exíguo e debilitado meio português. Muito vivido, Vítor Silva Tavares não foi, como agora se diz por aí, um “editor radical”: ele foi sobremaneira um homem livre, que sabia o que queria e podia fazer nos limites dos seus meios pessoais e oficinais, e que afirmou essa consciência sem ceder o passo a expansionismos de qualquer tipo. A liberdade que — como ninguém — ele fundou e instituiu para si mesmo foi um caso raro na vida portuguesa e é isso, especialmente isso, que hoje devemos celebrar nesta despedida difícil e triste.

Mas não apenas a liberdade. Silva Tavares deu-se a uma conversa transgeracional que tornou o seu ofício de editor de livros numa cave da Rua da Emenda, ao Chiado, em Lisboa, apenas uma parte do seu testemunho fundamental. Outros, como Luís Oliveira, da Antígona, levaram mais além a edição alternativa (publicando Orwell, London, Morris, Thoreau…), mas ninguém como Vítor deixou testemunho vivo de muitas décadas de literatura e arte. Na sua geração, ele pode mesmo ser considerado como uma das memórias vivas ligadas a figuras fortes, como José de Almada Negreiros, Herberto Helder, Luís de Sttau Monteiro, Ruy Cinatti, Nuno Bragança, João César Monteiro, Fernando Ribeiro de Melllo, Luiz Pacheco, Luiza Neto Jorge, Alberto Pimenta, Mário Cesariny de Vasconcellos — todos eles, mais ou menos outsiders do sistema político-cultural que depois de 1974 teve reverberações intrigantes, mas que não fizeram de Silva Tavares um radical explosivo, antes um comentador irónico e subtil, capaz de ir buscar à mais antiga cultura literária das cantigas de maldizer o tom de crítica adequado ao momento.

Há dois anos, na livraria Sá da Costa, ao Chiado, leu um “manifesto colectivo” sobre o iminente fecho da loja e o sistema livreiro-editorial-imobiliário, de autoria não declarada, mas claramente redigido por ele, reconhecível pelo tom sarcástico, erudito e vernáculo, particularmente fluido e polido por um extenso conhecimento e uso da língua portuguesa, que tornava qualquer uma das suas intervenções públicas, orais ou escritas, a prova provada da capacidade e graça que tinha de comunicar. Nesse aspecto, Silva Tavares está muitos degraus acima de outros editores da sua geração ou próximos dele na idade. Se tivesse querido, seria dez vezes mais que eles em termos empresariais. Eis um imenso campo de inquirição de história cultural, que alguns esperam nunca seja feita, para perpetuação de mitologias pessoais adventícias…

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O cinema e o cineclubismo foram um dos grandes interesses de Vítor Silva Tavares, como seria expectável para a sua geração. Certa vez, vi-o apresentar Orfeu Negro numa sessão ao ar livre na Mouraria, onde demonstrou tal fluência e sedução linguística, que amiga brasileira que estava comigo ficou fascinada por ele. (Como poderei eu hoje dizer-lhe que VST faleceu?!)

Esse desempenho gentil teria em anos recentes muitas outras provas que aproximaram Vítor Silva Tavares de gente nova e até muito nova, que viu nele, com razão, o patriarca lúcido, exclusivo e cúmplice de novas práticas de edição alternativa e agitação cultural. Um livro sobre a sua editora, publicado em 2014 pela pequena livraria Letra Livre, ajudou ao reconhecimento dessa aventura unipessoal e libertária, feita através de pequenos livros com pequenas tiragens, nunca reimpressos, que para alguns ajudaram a fundar uma fama ou uma mística, e para outros foram o caminho possível dum homem livre, que fez o que pôde. Consciente do verso e do reverso da história editorial, Silva Tavares decidiu não ter veleidades de competir com um sistema que sempre lhe seria adverso caso capitulasse com a sua sagrada liberdade, e assim afirmou uma independência que se tornou um ícone cultural. O seu principal discípulo, o jornalista e editor Paulo da Costa Domingos, tornou-se num livreiro online e de banca de rua para não ceder ao parasitário sistema livreiro instituído. Valências como a força do design nos livros da & etc foram deixadas na sombra para se manter a visceral independência face ao oficial ou oficioso, como sucedeu em 1982, quando convidei a editora a apresentar numa exposição na feira do livro de Lisboa os trabalhos de Carlos Ferreiro, então em flagrante evidência inovadora.

Agora que Vítor Silva Tavares “deixará de ser visto” pode acontecer, como hoje prev(en)iu Pedro Piedade Marques, que muitos venham homenageá-lo. Nada contra. Desde que não se ofenda quem antes e depois de 1974 fez prevalecer a profunda liberdade com que escolheu viver — e, sem aviso, morreu.