Esta notícia é um escândalo.

Sou do tempo em que havia mais médicos do que vagas para a formação na especialidade. Quem não conseguia vaga, ou simplesmente não queria especializar-se, tinha contudo uma alternativa: trabalhar como “clínico geral”. Querendo isso dizer que se tratava de um clínico que, por esta ou aquela razão, se não especializara e praticava, portanto, clínica “em geral”. Todas as pessoas da minha geração ou mais velhas conheceram esses médicos e foram tratadas por eles.

Depois os médicos foram atacados pela imbecilidade contemporânea da “especialização” obrigatória. Todos temos de ser especialistas em alguma coisa: nefrologia, pastéis de bacalhau, política internacional. Não podemos é ter uma profissão simples, sem um sufixo qualquer a circunscrever-nos. Vai contra as regras de Bolonha, os regulamentos do trabalho e os interesses dos sindicatos. Porque o supremo pecado dos não especialistas é a polivalência ou, pelo menos, a possibilidade de polivalência, e a polivalência partilha com a prostituição um pecado mortal: não é exclusiva. Um polivalente pode fazer várias coisas, todas indefinidas e passíveis de escapar aos Acordos Colectivos de Trabalho e aos regulamentos profissionais. Pode fazer hoje um trabalho e amanhã outro. E isso não é moral, não é razoável e não é progressista. É um escândalo e um perigo para as instituições e para a moral pública. E para os sindicatos.

Há trinta anos, todos os médicos faziam o curso de medicina e, depois, dois anos de estágio em medicina interna, cirurgia, pediatria, obstetrícia e num centro de saúde. No termo desse percurso, iniciavam uma especialidade ou começavam a exercer. Agora fazem um curso com menos um ano (graças às luminárias de Bolonha), despacham o contacto com a prática médica num único ano (e até com isso querem acabar) e, se não fizerem uma especialidade, não servem para nada. Porque até para não se ser especialista é preciso ter uma especialidade.

Há, com toda a certeza, imensos estudos e ensaios sobre a bondade intrínseca desta imensa palhaçada, em que gente adulta e com óptimos resultados académicos é tratada como um bando de adolescentes com borbulhas e problemas de aproveitamento escolar. Mas nenhum desses estudos e ensaios apaga esta evidência: que, depois de anos de estudo (e de generosas quantidades de dinheiro dos contribuintes gastas a financiar esse estudo), há umas dezenas de médicos que não vão poder trabalhar porque os não deixam.

Importa dizer que a culpa, neste assunto, não morre solteira. A culpa é da Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (ACSS), que não tem poder de decisão mas tinha o dever de alertar e recomendar; é das direcções do Internato Médico, que têm responsabilidades directas na definição das vagas para formação; é dos sindicatos médicos e da Ordem, que foram os principais responsáveis pela armadilha da especialização obrigatória. Todos sabiam que não haveria vagas suficientes para especialização de todos os candidatos, ao mesmo tempo que defendiam e impunham a obrigatoriedade dessa especialização. Todos lavaram as mãos do assunto. Todos assobiam agora para o ar, ou esgrimem regulamentos, directivas e memorandos, o que é a mesma coisa. Há dois ou três anos que toda esta gente sabia que isto ia acontecer. E ninguém fez nada.

PS. E os médicos: sempre prontos a chorar pelos recursos que faltam no SNS e ninguém disponível agora para protestar contra este desperdício obsceno de gente que se esforçou, que merece, que é boa e que faz falta? Só interessa o pagamento das horas extraordinárias?

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