Era uma vez um mundo a preto e branco. Analógico e simples, substituído por outro, com milhares de pixels, cores, dispositivos com muitos botões e funções. Muito complexo.

Bem vindos ao dia de hoje, resultado de milhares de anos de evolução que se traduzem numa realidade aparente, em que vivemos atrás de um ecrã. Este texto está, também, a ser lido num ecrã.

O papel não morreu, mas passou de moda e arrisca-se a posicionar-se como um acessório vintage ou uma abordagem premium às estórias que o jornalismo tem para contar, para quem não abdique de um misto de sensações entre o cheiro da tinta e o toque das folhas de papel. Como nos discos de vinil.

Da história que o digital conta, não pode faltar o já estafado aforismo “todos em rede”, nessa pretensa ilusão de estarmos todos conetados. Não estamos. Ou estamos, embora mais longe, presos a essa ideia de proximidade.

E porque estamos todos em rede criou-se a rede das redes que quer anular os seis degraus de separação entre cada um de nós. No Facebook somos todos amigos enquanto espreitamos, com voracidade, a vida alheia. Dos amigos, quantos são aqueles a quem podemos telefonar quando nos esquecemos da chave de casa? Esse(s) é aquele que conta, com ou sem partilha de memes do Primeiro-Ministro, likes ou gatinhos fofinhos publicados a meio da tarde. Porque nesse curto intervalo para café vamos ao recreio que é o Facebook.

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Trabalhamos mais porque perdemos mais tempo, enquanto temos ferramentas que nos substituem e facilitam processos. Ao libertarem de um lado, carregam do outro. Foi assim com os eletrodomésticos. Não nos sobra tempo mas esticamo-lo para consumirmos os tais gatos, gifs, vídeos e notícias. Como isto não se cria do nada, são precisas pessoas para alimentar uma rede que cresce, manifestando-se e alterando-se a cada segundo.

Se consumimos, é preciso produzir: notícias ou conteúdos multimédia, entre todos os pormenores que a audiência espera e aplaude. Como a curadoria humana ainda não encontrou substituto nos eficazes algoritmos (veja-se o exemplo do Pandora ou da Apple Music), são precisas pessoas para procurar, produzir, publicar. Monitorizar. Analisar. Corrigir. Avançar.

Consumimos mais e pagamos menos — ou não pagamos –, pelo que sujeitamos profissionais do jornalismo, da arte da escrita e disciplinas relacionadas, a uma espécie de míngua que só não acaba por amor à arte. Aquela que nos dá os conteúdos que consumimos, até partilhamos e, só raras vezes, pagamos. A culpa morre solteira. Já nos esquecemos do quando, e como começou.

Um dia, um motor de busca tornou-se muito útil e popular. Milhões de pessoas instalaram-no nos seus computadores. Tudo mudou. Esse motor de busca já não servia apenas para procurar, mas para agregar, gerir, publicar. Tornou-se um gigante que controla as nossas atividades na web. Passou a compilar as notícias sem pedir licença a ninguém. Porque tudo encontra e tudo apresenta, deixou sem retorno quem as produzia. Ainda hoje se discute o que pode ser feito para reverter a situação. Tarde demais.

Não sem antes os que publicam terem conseguido reverter — só um bocadinho — o jogo a seu favor, convencendo os anunciantes de que não havia futuro no digital para além das suas páginas, e que manterem o status quo do investimento publicitário, inserindo publicidade nas suas páginas de jornais e revistas enquanto ofereciam banners e outros formatos na web, seria o melhor para todos. Não foi.

Passámos a viver em função de métricas fáceis de adulterar que se focam mais no volume do que na relevância. As page views dominam o discurso online, contaminando o que se faz e como se faz. Nem tudo é mau neste monstro que nos permite pesquisar literalmente tudo, incluindo conhecimento científico, lado a lado com técnicas para colar papel de parede.

O mundo tornou-se tão amplo quanto a nossa possibilidade de ver largo e longe. Rapidamente, alguns aprenderam as técnicas do negócio, enquanto outros dominaram a criação de ferramentas e aplicações para aumentar a nossa presença online. Enriqueceram depressa e desapareceram da rede. É o que faremos todos quando percebermos que o melhor da rede é o seu potencial analógico. Tal como na rádio, cujo princípio é analógico, potenciado pelo digital.

Esta não é, mas poderia ser a história da rádio, porque a radiodifusão em Portugal também passou pelas fases da descoberta, enamoramento, amor e desencanto que atingiram os outros meios de comunicação social na sua relação com a web. Amadurecemos e já percebemos que este não é o El Dorado que nos anunciaram. É uma plataforma de distribuição e promoção, pode ser uma nova estrutura para criação jornalística mas, a web, não é a the next big thing. O que a web suporta, sim. Por isso, estamos gradualmente a transportar a web para o bolso, criando aplicações que dependem dela mas que não usam browsers para para funcionar. Será o fim do URL?

A digitalização mudou tanto a forma como comunicamos que não há qualquer comparação possível com o dia de ontem. A rádio mudou. Transmutou-se. Transportou-se. Há anos que digo o mesmo: a rádio já não é apenas rádio. Contudo, para ser relevante, a rádio terá de ser sempre e cada vez mais, fiel a si própria, aos seus princípios, à sua natureza que é sonora. Tudo o resto é digital.

Paula Cordeiro é investigadora, professora no ISCSP e a Provedora do Ouvinte da RTP