1. Há tempos, em plena primavera de Maio, fui a Viena. E, como sempre ocorre, quase maquinalmente dirigi-me ao Museu Albertina, uma das minhas moradas ali, cofre de memórias, fausto e tragédia como tantas outras no “Ring” e hoje também palco de exposições temporárias. Estava um sol tímido, não havia ainda cachos de turistas, a manhã era minha. E de repente, como um súbito vento que corresse, algo dentro do museu me desviou do meu caminho. Era um pintor. Nunca o vira, ignorava-lhe o nome. Mas fiquei muito tempo, indo e vindo, olhando, voltando atrás, recomeçando. (Ele não me deixava partir.) Nasceu em Viena, em Julho de 1942, chama-se Eduard Angeli e não sei que dirá o seu nome no universo dos que “sabem”ou dos que ditam o que “devemos saber”, nem isso interessa. Interessa que o pintor — consagrado ou não, “importante” ou não – fora capaz de me interpelar tão fortemente que a minha manhã mudou de rumo e o meu olhar de destino.

Eram portos abandonados, invernos despidos, nevoeiro, quartos vazios, gente só. Silêncios espessos. Pontes sobre canais de águas quietas, janelas fechadas, portas que jamais se saberá para onde abrem ou o que escondem. Uma atmosfera de fechamento. Cidades mortas talvez porque numa legenda pude captar que Angeli, qual anjo fúnebre, chamava a Istambul, Veneza ou S. Petersburgo “cidades mortas” quando, com as suas asas, as sobrevoava. Havia uma longa sombra de melancolia, como um aviso de despedida. Ou como a certeza da morte como único epílogo possível para traço tão desapiedadamente sombrio. Nunca mais esqueci aquele dia, nem o rasto de noite que ele me deixou. Mas sobretudo não esqueci o poder mágico de certos criadores, que com a sua poção mágica, que pode ser um pincel (mas também uma nota de música mas também um ramo de palavras), nos capturam, de forma tão intensa. Tão intensamente “privativa”. Como Angeli, de quem continuo sem saber nada, já sabendo tudo.

2. Jorge Martins também me interpela. E sempre me capturou e já perdi a conta aos anos que levo nessa captura. Angeli fê-lo com a implacabilidade da solidão, Jorge Martins, com a luz e o sopro do seu próprio ecletismo. Mas Jorge Martins é uma ilha. O que torna difícil, senão impossível, defini-lo ou encaixá-lo, falar de escolas, evocar influências, atribuir-lhe mestres, arrumá-lo em “capelas” e outras instâncias e, tratando-se dele, não se vê a premência de tal exercício. Ou sequer a sua utilidade. Jorge Martins, de alguma forma, dispensa tudo isso, caberá quando muito naquela zona difusa e confusa, indefinida e nebulosa, que costuma resumir-se com o adjectivo de “inclassificável”. O que obviamente merece reflexão mas, sobretudo, merece aplauso. Talvez seja afinal o que sempre sucede com alguém que, reclamando-se da pintura, sempre lhe respondeu de diversas maneiras, usando de vários processos formais e actuando segundo critérios muitíssimos específicos, os seus. Sempre apenas os seus, conduzindo-o a uma pintura tão limpa, tão complexa. Tão igual a nenhuma, tão luminosa mesmo quando não o parece. Tão produtora de sobressaltos estéticos quanto de perplexidade; tão capaz de imediata sedução quanto de desprevenidamente nos reduzir a um atónito “mas onde foi ele agora buscar isto?”.

Mas… e ele? Será este feroz individualista que combate um sistema de arte contemporânea que não cessa de se promover — e aí se amparando –, será ele capaz de se definir a si próprio, já que eu não sou? Que ninguém é? Uma vez perguntei-lhe e fi-lo quase amorosamente porque me deixei capturar vai já para muito tempo. Mas fi-lo também sem grande fé — quem gosta de debitar bilhetes de identidade quando a natureza humana mais não faz do que erguer muros de defesa à sua volta? Fosse como fosse, e certamente por delicadeza, Jorge Martins ofereceu-me umas palavras: “Sou um pintor que acredita na pintura! Parece idiota, mas não é nem simples, nem fácil! Face à inflação torrencial de imagens que desfilam diariamente diante dos nossos olhos, aos profetas do fim da pintura e à tempestade em que tanto os teóricos como os artistas tentam navegar desde finais do séc. XIX, é um grande desafio continuar a acreditar que é possível representar ‘um’ universo numa superfície plana!” E a vida, quis eu saber? A vida vai -se enrolando e desenrolando nele e na pintura: “Tudo o que vi e vejo, vivi e experimentei, passa por mim e deixa traços quer no meu carácter quer no meu trabalho”.

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O resultado, isto é, o fruto desse só aparente caos onde por vezes ousam coabitar obras exclusivamente monocromáticas, no seu austero e coerente preto e branco, com explosões de cor e alto grau de violência cromática; dessa torrente de curso contínuo, onde desaguam desenhos, pinturas, aguarelas, fotografias, escultura, em fecunda versatilidade, está garantido. Seja qual for o modo como esse “trabalho” tenha vindo a ser “lido”, percepcionado, acolhido ou criticado ao longo do tempo e das várias estações pictóricas do artista, o “espaço” de Jorge Martins e a sua assinatura estão, repito, garantidas. Estão-no sob a forma de um lugar cativo e cimeiríssimo na história da pintura da segunda metade do século XX português e basta apenas lembrar essa verdade forte como o fogo e clara como a água, para percebermos de que se está a falar com acerto de alguém que pinta muito bem.

3. E ainda a propósito dos impulsos sobressaltados que alguns criadores nos causam ou da graça mais lânguida com que nos abençoam; a propósito do incrível poder de atracção e convocação que alguns deles, com o fôlego da sua “forma de fazer”, exercem sobre nós – lembro-me uma vez mais de Jorge Martins e de uma certa noite na Culturgeste, estava-se no inverno de 2001. O sopro, esse misterioso, intransmissível, insaisissable dom, ia, cavalo à solta, de sala em sala, do imenso edifício. Projetando-se sobre a superfície das telas, luminoso, liso, complexo, novo, não novo, cinematográfico, vibrante, austero, festivo, versátil, o sopro, soprava. Na sala havia o brilho das coisas inesquecíveis e o glamour dos momentos irrepetíveis e eu, lembro-me bem, deambulava, o olhar perdido de tela em sala, e de sala em tela. Interpelar era aquilo mesmo mas não é qualquer um, nem qualquer coisa, que nos interpelam assim. Um grande momento que Jorge Matins reviu porém sobriamente (“Não sei se algumas exposições serão marcos, mas podem ser pontos de viragem. A Culturgeste foi o fim, até ver, de um certo modo de representar e encenar figuras”). O pintor ter-lhe-á certamente preferido Serralves, uns anos depois. Tinha razão: o mundo artístico e outros mundos também preferiram, Serralves foi em 2013 e foi uma consagração. Tratou-se de “um grande revisitar de modos e formas que não desenvolvi a seu tempo” (e que curiosamente o pintor viria a retomar, em recente mostra, ocorrida na Fundação Arpad Szenes/Vieira da Silva, a convite da sua galerista, Maria da Graça Carmona e Costa).

Longa caminhada, portanto, gloriosa caminhada, e, mesmo se um incauto ou um distraído o acham à margem dos palcos mais mediáticos, que importância? O feroz individualista, o caótico e indisciplinado ser, e o artista “fanático da sua própria independência e da sua liberdade”, durou. Marcou. Há uma inconfundível impressão digital já deixada que o dispensa hoje de quase tudo.

E mesmo se nunca se sabe o que se passa dentro de cada um, quase juraria que poucos visitaram distraidamente , “como quem desce uma avenida”, as suas grandes mostras — Culturgest, CCB, Serralves, Gulbenkian, Fundação Vieira da Silva, por exemplo. Ele, muito simplesmente, não suportaria isso: “Odeio exposições que se vêem como quem passeia numa avenida!” e eis o que irritaria este ser que também pode ser irritadiço. Praticando por vezes algum mau feitio (“sou um macio intolerante”), e recusando submeter-se a nada que o discipline a não ser a sua própria disciplina: inventada, reinventada, recriada por si, para cada circunstância, cada momento, cada gesto necessários à caminhada.

“No fundo, o que gostaria é que os espectadores tivessem um verdadeiro prazer a olhar as obras, a voltar atrás e descobrir pontes entre formas feitas há muitos anos de distância e recontextualizadas noutras dimensões e com outros materiais. E depois se sentissem estimulados sensorialmente, interpelados intelectualmente e levados a procurar e a encontrar unidade na diversidade. E já agora a aperceberem-se de uma certa dimensão musical da criação pictural. O Simonides dizia que ‘a pintura é poesia silenciosa ‘ eu tenho vontade de acrescentar a música”.

Por alguma razão me lembrei de Jorge Martins e da sua formidável capacidade de interpelar. Talvez simplesmente porque tenha saudades dele. Podia ter-me ocorrido o verbo de um poeta, o violoncelo de um compositor, o som de uma voz, mas foram os seus pincéis e telas e histórias que hoje vieram ter comigo.
E se eu disser que ele é um grande interpelador, aí sim, teremos talvez um princípio de definição. E por isso o tal lugar no camarote de honra onde tomam assento só alguns. Poucos são os escolhidos, mesmo que seja farta a colheita.

4. E agora Jorge? “Agora, tal como no paleolítico os artistas pintavam bisontes, uma das funções dos artistas é encontrar os bisontes da sua época. Quais são os nossos?”.