Quando no início de Janeiro de 2013, na véspera do seu 75.º aniversário, Juan Carlos I foi entrevistado para a TVE pelo jornalista Jesús Hermida, duas conclusões puderam ser imediatamente retiradas. A entrevista, acontecimento raro num reinado que se aproximava a passos largos do seu 40.º aniversário, tinha dois grandes objectivos: pretendia, em primeiro lugar, controlar os danos que o rei e a monarquia sofriam como consequência dos escândalos pessoais e financeiros, mas todos de inequívoca natureza ética (ou de falta dela) que envolviam directamente Juan Carlos I, a sua filha mais nova, a infanta Cristina, e o marido desta, Iñaki Undangarín; em segundo lugar, buscava recuperar alguma iniciativa política por parte da ala juan carlista da Casa Real (a outra, alegadamente felipista, tem como rostos e cérebros a rainha e a princesa Letízia Ortiz) demonstrando a capacidade, a vontade e o desejo sentidos pelo monarca, e pela sua facção, de continuar a reinar, afastando o espectro de uma eventual e até desejável abdicação.

MADRID, SPAIN - DECEMBER 27:  Spanish Royals (L to R) Princess Letizia, Prince Felipe, King Juan Carlos and Queen Sofia attend the first Parliament session with the new government at the Spanish parliament building on December 27, 2011 in Madrid, Spain.  (Photo by Carlos Alvarez/Getty Images)

Hoje, 2 de Junho, o presidente Mariano Rajoy, após uma curta audiência matinal com Juan Carlos I, anunciou que o rei lhe comunicara a sua vontade de abdicar e que ainda durante a manhã explicaria aos espanhóis, “pessoalmente”, as razões dessa abdicação. Estas, resumiu-as o monarca, evocando a certeza do dever cumprindo, centram-se na necessidade de promover a mudança, sendo que, curiosamente, a tão necessária mudança foi apresentada como sinónimo de “estabilidade” (marca, por excelência, da “identidade da instituição monárquica”).

A pergunta que hoje se pode fazer, mas para a qual não há por enquanto resposta definitiva, é o que é que terá mudado no espaço de alguns meses para que Juan Carlos tivesse decidido abdicar? Por que razão em Junho de 2014 se fala em “impulso de renovação” que o seu sucessor terá obrigação de protagonizar, quando em Janeiro de 2013 a palavra de ordem era continuidade? Degradação do estado de saúde do rei, reconhecendo-se uma capacidade muito limitada para enfrentar os desafios políticos, mas também pessoais, que se colocam ao rei de Espanha nos tempos mais ou menos próximos? Deterioração da sua margem de manobra política, e do seu poder efectivo, no seio da família real como consequência de erros políticos e pessoais cometidos nos últimos dois ou três anos? Um pouco de tudo?

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Ora, independentemente das razões da sua abdicação, Juan Carlos I foi um monarca excepcional porque foi adquirindo qualidades políticas singulares em tempos extraordinários e de grande imprevisibilidade. Se a imprevisibilidade se manifestava antes de 1975 quando parecia ser remota a possibilidade efectiva de vir a reinar após a morte de Franco, não deixou de, recorrentemente, fazer prova de vida ao longo de 39 anos de reinado quando pareciam demasiado pesadas as crises políticas ligadas à formação e consolidação das instituições democráticas espanholas – centrais e autonómicas –, ao problema dos nacionalismos, à questão do terrorismo (e não apenas o da ETA), e às bases relativamente frágeis em que a economia espanhola se reconfigurou após a profunda crise percorrida entre 1975 e 1985.

Ora se Juan Carlos I tinha e teve em 1975, e em todo o longo processo de transição e consolidação do regime democrático, qualidades pessoais e políticas capazes de contribuírem para defender um projecto político e constitucional em que o objectivo prioritário, por trás da instituição da democracia, era encontrar um modus vivendi entre espanhóis capaz de superar a lógica da guerra fria e, também, da guerra civil, nos últimos anos essas qualidades não desapareceram mas deixaram de ser úteis.

Nos primeiros vinte anos da democracia espanhola o espaço político conheceu e conviveu com o fenómeno do nacionalismo. No entanto, a prioridade da acção política esteve na institucionalização democrática de um campo de ideias e de práticas políticas que iam desde a Falange ao Partido Comunista Espanhol, passando por partidos e projectos políticos conservadores, democratas-cristãos ou socialistas (ou sociais-democratas).

Em 2014, como de há uma dúzia de anos a esta parte, os desafios políticos são de outra natureza. Além da questão da crise económica e financeira (do estado central, mas sobretudo das comunidades autónomas e do sistema financeiro privado) e do desemprego, a Espanha de hoje, como desta primeira década do século XXI, apresenta-se confrontada com desafios políticos típicos do mundo pós-guerra fria em que as ameaças ou os desafios à durabilidade da configuração do Estado e à convivência política pacífica radicam no peso crescente das agendas nacionalistas catalã, basca ou galega, mas, também, de outras regiões periféricas de Espanha ou do próprio centro castelhano-leonês.

Ora se Juan Carlos I pôde e soube, independentemente do peso das circunstâncias e do papel desempenhado por outros protagonistas individuais e colectivos, vencer os desafios que se colocaram nos primeiros vinte anos do seu reinado, e que lhe permitiu, por exemplo, atrair para o campo monárquico, mesmo que na qualidade de juan carlistas, muitos republicanos, parece por demais evidente que os novos problemas com que a Espanha hoje se confronta são de diferente natureza e são colocados por novos protagonistas (não só ponto de vista etário mas, também, do ponto de vista da sua formação política e ideológica e dos objectivos que prosseguem).

Actualmente, em Espanha, os filhos da democracia instaurada e consolidada entre 1975, a entrada na União Europeia e o fim da guerra fria, não ignoram aquilo que foi a guerra civil, como não ignoram a natureza dos combates políticos dos tempos da guerra fria e o efeito afinal apaziguador que esta teve na Espanha do segundo franquismo, da transição e da consolidação democrática. No entanto, o impacto que o fim do confronto entre “democracias burguesas” e “socialismo real” teve na reconfiguração da Europa, quando o espectro das revoluções socialistas nas suas diversas modalidades foi substituído pela confiança quase cega nas virtudes das soluções (às vezes revoluções) nacionalistas, sejam elas inspiradas por uma espécie marxismo-leninismo reciclado ou pela agendas dos nacionalismos nascidos na Europa a partir da segunda metade do século XIX, tornaram Juan Carlos I e a forma a substância da monarquia que corporizou em algo aparentemente dispensável.

Nesse sentido, os desafios que a Espanha pós-Juan Carlos I irá viver nos próximos anos não são tanto em torno da legitimidade e durabilidade da monarquia, embora estes problemas possam e devam ser discutidos, mas em torno de uma possível reconfiguração mais profunda sobre aquilo que é e pode ser o Estado espanhol numa Europa e num mundo em que os nacionalismos tanto parecem soluções políticas cheias de vitalidade como uma terrível doença incurável.

Historiador, professor da Universidade de Évora