Houve um tempo em que se cavaqueava sobre rainhas de Inglaterra. Um tempo em que Cavaco Silva, então Presidente da República, lamentava as limitações próprias aos seus poderes constitucionais. E um tempo em que o país se debruçava sobre as regras do regime, preocupado com a inutilidade do semi-presidencialismo. Com Marcelo, esse tempo acabou.

Primeiro, acabou porque o contexto político da Presidência de Marcelo é muito diferente do de Cavaco Silva. Vivendo duas legislaturas que produziram maiorias absolutas de apoio ao governo – PS (2005-2009) e PSD-CDS (2011-2015) – o ex-Presidente sentiu-se várias vezes sem poder de influência e relegado do palco das decisões políticas. Pelo contrário, Marcelo entrou em Belém com uma improvável geringonça em São Bento, cujas dúvidas sobre a sua esperança de vida apontaram os holofotes para a Presidência.

Segundo, esse tempo acabou porque a popularidade de Marcelo lhe concede uma legitimidade acima dos restantes actores políticos, o que, quando é essa a sua vontade, lhe tem permitido ultrapassar os limites dos poderes presidenciais. Algo que nunca passou pela cabeça de Cavaco Silva, seja por via da sua interpretação formalista da Constituição, seja por via de a sua impopularidade (sobretudo nos últimos anos) não lhe conceder iguais oportunidades.

Ora, estes dois factores – contexto político e popularidade de Marcelo – alteraram o normal equilíbrio de forças do regime.

Desde logo, mudaram a relação da Presidência com o governo. Como já escrevi antes, Marcelo assume-se primeiro-ministro do primeiro-ministro. Por um lado, ele é um presidente forte, foi eleito com uma maioria absoluta e é a personalidade política mais popular no país. Por outro, António Costa é um primeiro-ministro enfraquecido pela derrota nas eleições legislativas e dependente da vontade de terceiros para se manter no cargo. A diferença que os separa é tão grande que impõe sobre António Costa “uma espécie de subserviência perante Marcelo: estando nas mãos do Presidente a dissolução do parlamento e a convocação de eleições, Costa vê-se sem remédio senão sujeitar-se às condições presidenciais, mesmo se estas forçarem algum desgaste político ao seu governo”. Como, aliás, sucedeu com estrondo no caso das provas de aferição, quando Costa desautorizou o ministro da Educação para satisfazer as pretensões do Presidente.

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Depois, ao mudarem a relação do Presidente com o governo, esses factores anularam também a relevância de PSD e CDS no debate político. Em termos práticos, a oposição deixou o parlamento, onde os partidos da direita não têm armas para ameaçar o governo e onde não conseguem sequer marcar os temas do debate público e a agenda mediática. E, deixando o parlamento, a oposição instalou-se em Belém, porque é efectivamente lá e com Marcelo que António Costa se vê na obrigação de negociar e, mesmo que isso lhe desagrade, de ceder nas suas decisões. PSD e CDS são, neste momento, espectadores do teatro político, com Marcelo no papel principal.

Por fim, a soma de todas estas circunstâncias entregou a Marcelo a definição do calendário eleitoral e, indirectamente, a capacidade de escolher o próximo primeiro-ministro. Sim, todos os Presidentes tiveram “bomba atómica” – a possibilidade de dissolver o parlamento e convocar eleições legislativas. Mas, nos últimos vinte anos, nem Sampaio nem Cavaco alguma vez reuniram condições de legitimidade tão inquestionáveis para o fazer. Por um lado, a esquerda vive amarrada a si mesma, sem que nenhum dos partidos da geringonça esteja disponível para assumir o custo político de uma ruptura. Por outro lado, a direita não tem força parlamentar suficiente para derrubar o governo. Sobra Marcelo, cuja actual coordenação com Costa lhe dará futuramente legitimidade para o deixar cair. E como só se imagina uma maioria absoluta PSD-CDS quando o fracasso das políticas económicas do governo PS se fizer sentir no bolso dos contribuintes, tudo isto implica uma gestão criteriosa desse calendário eleitoral. Quererá Marcelo fazer esse exercício? Veremos. Mas, na prática, Passos Coelho só voltará a São Bento se Marcelo o desejar.

Onde é que isto nos deixa? Perante a constatação de que, seis meses depois de eleito, Marcelo tem o regime na mão. Manda no primeiro-ministro, controla a oposição, define o calendário eleitoral e até pode escolher o próximo primeiro-ministro. Nada acontece sem a sua autorização. Nada do que não autoriza acontece. Afinal, não foram necessárias revisões constitucionais para se chegar tão perto quanto possível do poder absoluto. A Marcelo bastou ser rainha de Inglaterra.