Há uns dias tive a oportunidade de colaborar com um dos fact checkings que o Observador tantas vezes faz. Na verdade, a minha colaboração foi menor, quase me limitando a indicar ao jornalista um outro economista com mais conhecimento dos dados em causa do que eu e depois a participar na discussão para destrinçar o que eram erros factuais de meras divergências de opinião. Imagino que este escrutínio dos órgãos de comunicação social, cada vez mais comum e que não se resume ao Observador, seja bastante incómodo para o poder político. Mas é verdadeiro serviço público que está a ser feito e quem mais ganha é a democracia.

O que escrevi acima é um lugar-comum. Mas é absolutamente verdadeiro. Há imenso trabalho científico a demonstrar que há uma correlação fortíssima entre a saúde de uma democracia e a liberdade de imprensa. No entanto, como todos sabem, correlação não é causalidade e não é de todo óbvio que a causalidade não seja a contrária. Afinal, todos concordarão que uma imprensa livre é também o resultado de uma democracia saudável.

Mas o que neste artigo pretendo realçar é que a causalidade é bidireccional, ou seja, uma imprensa livre e exigente não é apenas um resultado de uma sociedade democrática, também contribui fortemente para ela. Um trabalho publicado muito recentemente na revista Electoral Studies (uma das boas revistas de Ciência Política) por Linda Veiga e Francisco Veiga (meus amigos e colegas aqui, na Universidade do Minho) e Atsuyoshi Morozumi (da Universidade de Nottingham) tem o sugestivo título de “Political budget cycles and media freedom” — Ciclos político-orçamentais e liberdade de imprensa.

A questão dos ciclos político-orçamentais já está bastante bem estudada para diversos países. E para Portugal também, graças aos meus colegas Veiga, que publicaram uma série de trabalhos sobre o assunto. Os principais resultados são aqueles que a leitora facilmente adivinha. Quando se aproximam as eleições, especialmente em eleições renhidas, os políticos no poder usam a política orçamental para captar mais votos, ou seja, ajustam o ciclo orçamental ao ciclo eleitoral. Isto é verdade quer a nível local quer a nível nacional.

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Seria de esperar que, com o tempo, os eleitores fossem percebendo a manipulação e parassem de se deixar enganar. No entanto, não é fácil; os Veiga também demonstraram que, com o passar do tempo, os políticos se tornam mais eficientes na arte de manipular os ciclos orçamentais. Basicamente, vão aprendendo quais são as rubricas que mais votos dão, nomeadamente o tipo de obras públicas que mais capta a atenção dos eleitores. Não é preciso grande esforço para perceber que esta manipulação do ciclo económico, podendo ser vantajosa sob um ponto de vista eleitoral, tem, a longo prazo, efeitos económicos predominantemente negativos.

Mas voltemos ao trabalho sobre a liberdade de imprensa. Com o objectivo de explicar quais os factores que mais influenciavam o ciclo político-orçamental, os autores juntaram dados sobre eleições e contas públicas para 69 países entre 1975 e 2010. A principal fonte de informação foi o FMI, nomeadamente a relativa às contas públicas, mas, naturalmente, juntaram outros dados, como os eleitorais e, crucialmente, um índice sobre liberdade de imprensa; este último foi construído a partir de indicadores da responsabilidade da Freedom House. Finalmente, usando todos estes dados e recorrendo a sofisticados métodos econométricos, estimaram um modelo matemático que descreve como os ciclos orçamentais são explicados por todos aqueles factores.

Nesta altura, a leitora já está farta do meu artigo e quer saber quais os resultados. Aí vão. Em primeiro lugar, mostram que, quanto mais informados forem os eleitores, menores são os ciclos orçamentais. Curiosamente, a condição mais crítica é, precisamente, a da liberdade de imprensa. Mais do que a existência de muitos meios de informação, como a internet, jornais, televisões, o que conta mesmo é o índice de liberdade de imprensa. Ou seja, com uma imprensa mais livre, a capacidade de manipulação das contas públicas é diminuída. Por isso, disse que o trabalho de escrutínio dos políticos feito pelos diversos órgãos de comunicação social é um verdadeiro serviço público.

Os autores vão ainda mais longe e perguntam: nos países onde os eleitores estão pouco informados, qual é a rubrica preferida para manipular do ciclo político-orçamental? A resposta é, mais uma vez, muito interessante. Para fazer esta manipulação orçamental, os governos não recorrem às despesas de capital. É com as despesas correntes que, preferencialmente, manipulam o ciclo eleitoral. Pode parecer estranho, mas, na verdade, não é. Os benefícios das despesas de capital, o famoso investimento público, são diferidos no tempo e podem não vir a tempo do próximo acto eleitoral. Assim, é com a despesa corrente — que inclui despesas com pessoal, aquisição de bens e serviços, transferências para as autarquias, etc. — que procuram obter os favores do eleitorado mais manipulável.

Para terminar, uma nota optimista. Actualmente, numa escala de 0 (óptimo) a 100 (péssimo), o índice de liberdade de imprensa em Portugal é de 18. O que, não sendo fantástico, estamos, por exemplo, abaixo da Noruega (9), da Bélgica (11) e do que estávamos em 2007 (14), não deixa de ser bastante bom. Afinal, estamos à frente de países como a Alemanha (20) e Espanha (27).