A primeira volta das eleições francesas deste domingo replicou, até certo ponto, um padrão que vimos na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e, mais recentemente, na Turquia: uma sociedade dividida socialmente em duas metades quase iguais (o que se reflete em empates técnicos nas sondagens), o crescimento do populismo mais ou menos extremista, mas com um êxito eleitoral sem precedentes, assim como um profundo descontentamento com as elites políticas, vistas pelas populações como moralmente corruptas e incapazes de assegurar o crescimento económico, a segurança interna, nem melhorar os problemas da guetização e radicalização das minorias nas periferias das grandes cidades. Isto já sem falar da incapacidade de resolver a crise europeia dos refugiados.

Tenho afirmado muitas vezes que estas características comuns a eleições recentes no Ocidente têm semelhanças entre si, mas importantes especificidades contextuais. A França não foge à regra.

Por um lado, os vencedores desta primeira volta: Emmanuel Macron, o jovem banqueiro mais dissidente que independente, que se apresentou a eleições como um outsider. Macron, dizendo que não é de esquerda nem de direita, mas é de esquerda e de direita, (quase) inventou uma nova figura institucional: o centro. Ora, em política, por muitas voltas que se dê, não há centro exato, o que transforma Macron numa incógnita ideológica (vem do Partido Socialista, mas tem um programa eleitoral mais perto da direita) e institucional.

Macron é apoiado por um movimento quase inexistente, mas traz consigo uma narrativa pró-europeia e de apoio à economia de mercado, à abertura francesa ao exterior. Propõe uma espécie de resgate da grandeza francesa através da União Europeia, à maneira dos líderes republicanos da V República (lembram-se do eixo franco-alemão do princípio dos anos 2000? Agora não há Grã-Bretanha na União Europeia para o contrabalançar). Vem, por isso, com duas enormes fragilidades: tem pouquíssima experiência política e não tem qualquer estrutura partidária. Como se faz um governo sem o apoio de um partido? Como se organiza um partido em dois meses para concorrer às legislativas? Como será a relação deste presidente solitário com a Assembleia Nacional, que vai ser eleita em junho? Quem prefere que Macron ganhe a segunda volta – e eu prefiro sem qualquer hesitação – deve estar consciente que a França pode passar por uma forte crise institucional.

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Do outro lado do espectro político, está, claro, Marine Le Pen. Não me parece que seja útil repetir o que os meios de comunicação social andam a dizer há semanas sobre as características da Frente Nacional. Interessa-me, sim, lembrar aos leitores um elemento central: a FN é o mais antigo partido político da extrema-direita europeia, fundado em 1972 por Jean-Marie Le Pen. Por isso, leva grande avanço em relação aos outros, cerca de vinte anos mais novos, nestas andanças políticas. Resultado: Marine Le Pen, transformou os temas tradicionais do seu partido em preocupações do cidadão comum. Transformou o tema da xenofobia e do racismo no tema da insegurança nacional, assim como transformou o protecionismo e o nacionalismo na solução para a crise económica. Finalmente, transformou o sentido da anti-imigração, de longuíssima linhagem no seu partido, na causa do problema do desemprego, da falência do estado providência e da exclusão social.

Sob este pano de fundo, está a velha ideia de grandeza imperial francesa, tornada no tema mais prosaico da recuperação do orgulho nacional. Um tema que os franceses, com o seu sentido de excecionalismo histórico, continuam a aceitar. Assim, Marine Le Pen transvestiu as suas soluções radicais e extremistas com uma roupagem democráticas. E tornou-se, com um empurrãozinha da conjuntura atual, numa candidata respeitável (aos olhos de mais de 20 por cento dos franceses) e elegível.

Estas características dos candidatos e os resultados das eleições levam-nos a três conclusões – nenhuma delas particularmente animadora.

Primeiro, os vencedores da primeira volta são outsiders com projetos políticos diametralmente opostos. Mas, mais importante, são estes que passam ao palco central da cena política francesa. Ou seja, a primeira volta das eleições francesas tornou-se uma espécie de cemitério dos partidos políticos tradicionais. Republicanos e socialistas procuraram evitar temas fraturantes, mas urgentes – e hoje estão a pagar a pesada fatura. Macron “o dissidente” e Le Pen “a extremista” são filhos dos mesmos fracassos. São filhos da mesma França.

Segundo, se a isto juntarmos o resultado eleitoral positivo de Jean-Luc Mélenchon, posicionado na extrema-esquerda, estes resultados abalam profundamente as caixinhas políticas da direita e da esquerda em que nos ancoramos para estruturar o nosso pensamento político, consciente ou inconscientemente, pelo menos desde o final do século XVIII. Agora, na França, há o centro moderado (que, como já foi dito acima, quer dizer tudo e não quer dizer nada) e os extremos (mais de 40 por cento dos franceses votaram nos partidos de extrema direita e extrema esquerda). Se Paris constituir a vanguarda, como já aconteceu no passado, seremos obrigados a rever as nossas referências, ainda sem outras novas em que nos ancorar.

Terceiro, independentemente de quem ganhe a segunda volta (as hipóteses de Macron são bem maiores depois do apoio de Fillon e Hamon, mas já nos habituámos a que em duas semanas tudo pode mudar), a França vai sofrer profundas alterações. Se for Macron, Paris terá que se adaptar a este presidente sem partido, o que implica alterações ainda que informais na política francesa – ou a paralisia. Se for Le Pen, a França sofrerá uma profunda alteração de valores (sem falar do triste destino da União Europeia), a democracia treme e o liberalismo sofre um duríssimo golpe. A versão moderna da extrema-direita vai fazer muitos estragos.

Nenhum dos cenários é positivo, ainda que o primeiro, de vitória de Macron, seja bem melhor que o segundo. Certo é que, aconteça o que acontecer, hoje a França, tal como a conhecíamos, acabou.

Investigadora do IPRI