Pedindo perdão da ousadia, esboço aqui um fragmento da biografia ímpar de Mário Soares a partir dos encontros e desencontros que com ele tive ao longo de cinco décadas e meia. Eles não deixam de ilustrar os modos como se fizeram, primeiro a luta contra a ditadura do Estado Novo e, depois, a luta pela consolidação da democracia após o levantamento militar do 25 de Abril de 1974. Cruzei-me pela primeira vez com a sua figura no ano decisivo de 1961, tinha eu 20 anos e trabalhava na pequena mas importante editorial do advogado Fernando Abranches Ferrão, a cujo escritório Mário Soares acorria para as discretas reuniões da corrente socialista da Oposição.

No início desse ano, irrompera a Guerra Colonial, que veio a ser o princípio do fim da ditadura. Talvez os conspiradores do escritório do meu patrão estivessem a redigir o «Programa para a Democratização da República» que o grupo de Mário Soares efetivamente lançou nesse ano e foi o primeiro documento político que assinei. No final do ano, houve pretensas eleições organizadas pelo governo mas a Oposição desistiu na véspera para marcar posição. Já integrado no PCP, participei na mobilização onde morava e frequentava a sede da candidatura em Lisboa, mas não voltei a encontrar Mário Soares, que não fez parte da lista da Oposição; ignoro porquê. Na véspera das eleições – 11 de novembro – levámos pancadaria brava da polícia de choque. Entretanto, houve esboços de greves e começou a agitação estudantil que se prolongaria no ano seguinte. Na noite de 31 de dezembro de 1961, teve lugar o ataque falhado ao quartel de Beja, politicamente liderado por Humberto Delgado!

Era o início da grande movimentação social contra o regime que atingiu o auge no 1.º de maio de 1962 com mortos e feridos. O PCP tentou recomeçar em 1963 mas, desta vez, a PIDE estava preparada e respondeu com inúmeras prisões, empurrando-me entre muitos outros para o exílio. Em França, foi decisiva a liberdade de participar numa discussão generalizada sobre o modo de derrubar a Ditadura, isolando gradualmente o PCP, tanto pela esquerda como pela direita. Muitos de nós saímos do «partido», iniciando novos movimentos marcados pela conjuntura internacional e também pela nossa juventude.

Só voltei a ver Mário Soares dez anos depois, quando ele próprio foi exilado para Paris em 1970 no seguimento da deportação em S. Tomé. A composição e o ambiente da Oposição, com exceção do PCP, haviam mudado radicalmente, tanto no plano pessoal como cultural e político. Os encontros com Mário Soares foram promovidos pelo meu dilecto amigo e futuro homem de cinema Mário Barroso, sobrinho de Mário Soares, já este era líder da oposição socialista e em breve fundador do PS. Se colaborámos, foi indiretamente, através do jornal «Fronteira», feito para os emigrantes por membros da LUAR com o apoio de pessoas livres como as do PS ou do nosso grupo.

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Com o 25 de Abril, enquanto Mário Soares crescia aos olhos de todos como o garante da liberdade, a minha vocação política esfumou-se no dia 28 de setembro de 1974, quando o PCP me convenceu que, para ele, a liberdade era uma forma qualquer de sovietismo adaptada às circunstâncias portuguesas. Como escrevi mais tarde, a questão central para a URSS e, portanto, para o PCP era a das antigas colónias. Aí, os comunistas ganharam, mas em Portugal ganhou Soares. Descobri então o milagre do voto livre. E não foi fácil realizar as eleições. Fiz parte portanto dos quase 100% que votaram para a Constituinte, dando uma vitória clara ao PS e tornando assim Mário Soares, no terreno como nas urnas, o fundador da democracia portuguesa.

A partir daí, descobri que a minha vocação era outra e deixei a política aos profissionais. Estive afastado durante anos e só voltei, por obra do Pacheco Pereira, em 1983, para constituir um grupo que tinha um nome que pretendia dizer tudo – o Clube da Esquerda Liberal. A sua principal atividade foi apoiar Mário Soares no regresso ao poder, bem como na constituição de um «bloco central» que não só nos salvou da segunda bancarrota, como concluiu o nosso processo de consolidação democrática ao aderir à Europa. Há quem esqueça que a oposição à adesão foi sempre comum à esquerda e à direita: já durante o PREC se faziam canções irónicas contra os apelos de Soares à Europa!

Foi nestes terrenos que mais me empenhei no campo soarista, o qual nem sempre coincidia com todo o PS. Desse processo fez parte, naturalmente, o empenho na sua primeira campanha presidencial. A oposição da esquerda à candidatura de Mário Soares era tão encarniçada que por pouco ele não conseguia virar o resultado eleitoral, vergando o próprio PCP sem nada lhe conceder. Com o segundo mandato como presidente, Soares já não precisava de apoio.

O que eu lhe devo não tem paga. É a liberdade de que gozo, incluindo a de discordar dele, coisa de resto que não creio que lhe tirasse o sono. No plano pessoal, o intenso período em que cooperámos culturalmente, sob a orientação do Fernando Gil, ficará como um dos mais importantes da minha vida. Soares é o nosso príncipe da política. Valente e orgulhoso; ágil e de olhar percutante; sempre com o sentido do essencial, Mário Soares dispensava as dúvidas próprias daqueles a quem chamava «os intelectuais», como se não fosse um deles. Foi uma honra, um prazer e uma lição de vida cruzar-me com ele!