A notícia da morte de Mário Soares não nos atingiu de surpresa. Todos sabíamos que podia chegar a qualquer momento. Ainda assim — no meu caso e certamente no de muitos outros — atingiu-me duramente. Um silêncio profundo envolveu uma avalanche de recordações. E, com elas, renasceu o sentimento de gratidão — que de forma tão tocante tem sido expresso por tantas e tão diferentes vozes que lhe agradecem a liberdade.

Creio que de facto devemos a liberdade a Mário Soares, embora muitos outros tenham também combatido pela liberdade — ao seu lado e muitas vezes em lados diferentes. Mas a Mário Soares devemos, além da liberdade, a difusão entre nós de uma atitude ou maneira de estar que torna a liberdade duradoura: a disposição para usufruir da liberdade habitualmente.

Não se trata “apenas” de combater pela liberdade. Essa dimensão militante ou heróica é indispensável para enfrentar as ditaduras. Mas não é suficiente para depois enraizar a liberdade como modo de vida habitual. Aqueles que revelam coragem no combate às ditaduras tendem depois a ter dificuldade em combater pela institucionalização da liberdade como modo de vida habitual.

Mário Soares — e Maria Barroso — combateram contra a ditadura do antigo regime com determinação e sem compromisso. Em muitos casos e em muitas culturas políticas, essa determinação está muitas vezes associada a dogmatismo: o dogmatismo dos que estão absolutamente seguros de ter razão e que, por isso, não conseguem ouvir as razões dos outros. Desta certeza absoluta, os dogmáticos retiram energias para recusar todo e qualquer compromisso com os seus opositores. Desta recusa mútua de compromisso emerge em regra a oscilação permanente entre revolução e contra-revolução.

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Mário Soares recusou todo e qualquer compromisso com o antigo regime. Foi preso 12 vezes, enfrentou o degredo e o exílio. Mas não era um dogmático. Queria realmente a liberdade, na única versão da liberdade que é duradoura e, por isso, não revolucionária e não dogmática: a liberdade para todos, a começar por aqueles que não concordam connosco. Por isso, uma vez derrotada a ditadura, voltou a combater pela liberdade contra os comunistas, os dogmáticos de sinal contrário ao de Salazar.

Mas creio que houve mais do que isso — que já seria muito. Combater contra o comunismo era ainda assim um combate. O que distingue ainda mais Mário Soares (bem como Maria Barroso), como um combatente de tipo especial, foi a capacidade de, a seguir, — como Primeiro-Ministro e sobretudo como Presidente da República — ter conseguido combater pela reconciliação nacional.

Esse combate pela reconciliação nacional teve seguramente muitas fases. O atrevimento de liderar um Governo PS-CDS (1978) e depois com o PSD (1983-85) foram marcos importantes. Mas esse combate foi sobretudo consagrado no primeiro mandato presidencial de coabitação com o Primeiro-Ministro Cavaco Silva (1986-1991). Foi essa coabitação que fechou o ciclo revolucionário e enraizou entre nós a liberdade como modo de vida habitual.

Um dos pontos mais simbólicos desse mandato foi sem dúvida a convocação de eleições gerais antecipadas em 1987. Contra a maioria de esquerda PS/PRD/PCP — que derrubara no Parlamento o governo minoritário de Cavaco Silva e exigia um governo de esquerda — Mário Soares simplesmente recusou enviar para o oposição o partido mais votado, ainda que minoritário. Esse partido era o PSD de Cavaco Silva, que tinha apoiado o rival de Mário Soares (Freitas do Amaral) nas eleições presidenciais de 1986. Era na época descrito como “quase-fascista” pela oposição de esquerda — numa típica expressão da interpretação dogmática ou revolucionaria da liberdade: a liberdade dos “nossos” contra os “outros”.

Mário Soares recusou essa interpretação. E recusou o governo de esquerda que cortejos de “anti-fascistas” lhe foram reclamar a Belém. Simplesmente, tranquilamente, convocou eleições antecipadas — de onde saiu a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva.

Com esta decisão tranquila, Mário Soares simbolizou a atitude de fundo da sua Presidência, que até hoje tem condicionado os detentores do cargo. Ele consagrou a democracia como “regime da regra”: o regime que obedece a regras imparciais, e não a propósitos ou “causas” de grupos particulares. Com a sua “Presidência de todos os Portugueses” e a coabitação com Cavaco Silva, Mário Soares tornou habitual a liberdade entre nós. Já não uma causa de combate ou uma promessa de perfeição, mas — simplesmente, fundamentalmente — um modo de vida habitual que aprendemos a usufruir tranquilamente.

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Num ensaio notável sobre a “Economia política da liberdade”, o filósofo britânico Michael Oakeshott alertou em 1949 para o erro de tentar definir “liberdade” em deferência “às susceptibilidades de, por exemplo, um russo ou um turco que nunca usufruíram da experiência da liberdade (e, por isso, só conseguem pensar em abstracções)”. Argumentou que “a liberdade não é uma abstracção nem um sonho, mas um modo de vida; um modo de vida que observamos ser apreciado por aqueles que o usufruem e a que chamam ‘livre’.”

Por isso, prosseguiu Oakeshott, “o propósito de um inquérito genuíno sobre a liberdade não é definir uma palavra, mas decifrar o segredo do que usufruímos, reconhecer o que lhe é hostil, e perceber onde e como pode ser usufruído mais plenamente”. No cerne desse segredo, pensava Oakeshott, está a ideia de equilíbrio e conversação entre vozes diferentes: vozes do passado, vozes do presente, vozes do futuro. “Embora em cada ocasião uma ou outra dessas vozes possa prevalecer, nenhuma domina permanentemente — e, por isso, somos livres.”

Esta ideia de equilíbrio moderado entre vozes diferentes estava também no cerne da reflexão de Edmund Burke sobre o segredo da liberdade inglesa (Burke falava do “equilíbrio do navio em que navegamos” e da necessidade de nos deslocarmos de um bordo para o outro do navio, quando este se inclina para um dos lados, com vista a restabelecer o equilíbrio).

Embora Mário Soares não tenha sido oficialmente um anglófilo, havia nele qualquer coisa de profundamente “Oakeshottiano” e “Burkeano”. Na fascinante e incontornável trilogia que Maria João Avillez publicou de uma longa conversação com Mário Soares, a dada altura (do volume I) aparece uma revelação curiosa. Mário Soares explica que as relações entre sua mulher e sua mãe eram difíceis. Simultaneamente, Maria de Jesus Barroso adorava o pai de Mário Soares e este dava-lhe quase sempre razão. A solução de Mário Soares foi a seguinte: “Um dia, o meu pai e eu decidimos fazer um pacto: eu daria normalmente razão a minha mãe; o meu pai daria razão a Maria de Jesus. Equilibrávamos, assim, um pouco as coisas” (p. 93).

Obrigado, Dr. Mário Soares.