Entre os livros que enchem as minhas prateleiras há muitos, a maioria, a que raramente ou nunca regresso e outros, mais raros, que retomo com alguma regularidade. Entre estes últimos está uma colectânea de grandes discursos do século XX, um livro sempre inspirador nestes tempos de líderes pouco inspirados. E um dos discursos que mais vezes reli, e já várias vezes citei, é o de Tony Benn no Parlamento britânico a 20 de Maio de 1993. Benn fora o mais esquerdista dos líderes que o Partido Trabalhista conheceu no pós-guerra e um fanático opositor de Margaret Thatcher, mas suspeito que, nessa noite, a “dama de ferro”, que entretanto já fora afastada da liderança do seu partido e do Governo, deve ter sorrido.

“Este é o meu último discurso num parlamento livre”, proclamou Tony Benn. Que prosseguiu:
“Uma democracia é muito mais do que um mecanismo destinado a eleger-nos e a permitir a aprovação leis. Ela implica a responsabilidade de conquistarmos de forma continuada o consentimento do eleitorado. Na próxima eleição terei de dizer ao povo de Chesterfield [a circunscrição de Benn]: ‘votem por mim, pois continuarei a lutar por vocês, mas não votem em mim para tratar de política agrícola, ambiental, comercial ou mesmo de política externa, sobretudo para tratar de política económica’. Estamos a passar por cima do povo britânico, sem o seu consentimento, para ceder o nosso poder a um sistema que se está a substituir à democracia parlamentar”.

O que o Parlamento estava votar naquela noite era o Tratado de Maastricht e o que Tony Benn denunciou foi um processo que desde então nunca mais parou: passo a passo, crise a crise, promessa a promessa, os parlamentos nacionais de toda a União Europeia têm vindo a ceder poderes ao “centro”, a uma União Europeia que é tudo menos uma entidade democrática.

O que se está a passar com o processo de escolha do próximo presidente da Comissão Europeia pode reforçar este processo. Se porventura for Jean-Claude Juncker o escolhido, isso significará que alienámos mais um pedaço da nossa soberania a favor de uma entidade que, mesmo tendo sido eleita pelo voto dos cidadãos, responde muito pouco perante esses mesmos cidadãos – e legisla com muito pouco consentimento dos eleitorados. A minha esperança é que a oposição encarniçada do Reino Unido a esta escolha faça os outros chefes de Estado e de Governo recuarem. O meu receio é que a insistência das elites europeias numa escolha que é uma farsa bem montada acabe por afastar ainda mais o país onde a democracia tem raízes mais antigas e, por isso, mais resistentes.

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Aquilo que nos têm dito certas elites europeias é que escolher Juncker corresponderá a respeitar o voto popular, uma vez que o antigo primeiro-ministro do Luxemburgo era o candidato do maior partido ao posto de presidente da comissão. Há neste argumento várias falácias.

A primeira falácia é a ideia de que os tratados europeus, mais concretamente o Tratado de Lisboa, dão ao Parlamento a prerrogativa de eleger o presidente da comissão. É verdade que, formalmente, o presidente da CE tem de ser votado pelos deputados europeus, mas eles não o podem escolher directamente, pois ele tem de ser indicado previamente pelo Conselho Europeu, onde têm assento os chefes de Estado e de Governo. Até ao Tratado de Lisboa o presidente da CE saía das negociações entre os Estados representados no Conselho, depois o Parlamento ganhou o poder de ratificação. Mas vai um grande salto entre poder de ratificação e poder de eleição sem constrangimentos nem negociações.

Ora o que os grupos políticos pan-europeus fizeram na última campanha foi pretender que tinham o poder de fazer a escolha eles mesmos, e o que hoje querem impor ao Conselho é a sua vontade dita “democrática”. É uma espécie de golpe de Estrado institucional que tem como objectivo reforçar o poder do Parlamento, a mais federalista das instituições europeias, aquela que sendo formalmente democrática é também a menos controlada pelas opiniões públicas.

A segunda falácia é a de que houve uma escolha consciente dos eleitores europeus, e que essa escolha recaiu em Jean-Claude Juncker. É duplamente ridículo. Primeiro, porque o seu nome era e é praticamente desconhecido dos eleitorados (na Alemanha, que tem uma das opiniões públicas mais atentas e informadas, só 7% dos inquiridos o reconhecem). Depois, porque a eleição europeia teve uma participação tão baixa, sobretudo por comparação com as eleições nacionais de que resultam os governos que, por sua vez, se sentam à mesa do Conselho Europeu, que é discutível, no mínimo, que o Parlamento tenha mais legitimidade democrática do que o Conselho.

Mas a eleição de Juncker representaria também um duplo salto na direcção errada. A 25 de Maio, um pouco por toda a Europa, os eleitorados enviaram um poderoso sinal aos responsáveis europeus. Por todo o lado ocorreu um crescimento significativo dos partidos s forças eurocépticas, uns apresentáveis, outros nem por isso. Achar que depois desse sinal se pode escolher um dos rostos das políticas europeias nos últimos anos, achar que escolher um político cinzento e hiper-federalista é a forma de responder à onda populista e anti-UE é do domínio da loucura política.

De resto, a meu ver, uma das coisas que mais desqualifica Jean-Claude Juncker é ele ser um federalista que vem de um micro-país cuja existência só faz sentido no coração da União Europeia, algo que não sucede com a maioria dos países que fazem parte da Europa. A próxima comissão, que preserva poder de iniciativa, deve fazer marcha-atrás em muitas das suas propostas ridículas e intrusivas – como esse regulamento de que falávamos no Observador por estes dias e que iria ilegalizar o Chanel nº5… –, preocupar-se antes em devolver alguns poderes aos Estados e concentrar-se no que é realmente essencial, como o mercado único e essa sua importante componente que é o mercado bancário.

O objectivo dos que defendem a ideia de que se deve ir forçando o caminho de um Parlamento Europeu “democrático” é que, com o tempo, o “demos” que falta, o povo que não se identifica com as instituições europeias, acabaria por aparecer, aproximando culturas políticas distintas. É uma ideia parecida à que presidiu ao desastre do euro, com bem recordou esta semana, no Financial Times, Gideon Rachman: de facto a moeda única também iria unificar culturas económicas distintas, mas como isso não aconteceu, estamos na crise que todos conhecem.

Nos próximos tempos não teremos nada que se pareça com uma democracia europeia – a própria ideia de democracia é perigosa quando pensamos à escala do Continente.

Por isso estou com Toni Benn: quando retiramos à supervisão dos eleitores de cada país, de cada pequena ou grande Chesterfield, políticas tão essenciais como muitas das que já fugiram ao controlo nacional, não estamos a entregá-las a um outro escalão democrático, estamos a delegar numa estrutura demasiado poderosa, demasiado opaca e com demasiadas cabeças. Por isso, ao menos que uma dessas cabeças não seja um dos criadores do monstro, o sr. Juncker.

Se para isso tiver de haver uma crise institucional na Europa, é o melhor momento para a ter. Infelizmente muitos governos, incluindo o português, só pensam em não ter mais problemas. É a forma de arranjarem problemas maiores amanhã.