Descobri cedo o perigo do ódio e do fanatismo no futebol. Dia 18 de Maio de 1996, final da Taça de Portugal no estádio do Jamor. Com 11 anos de idade, vi caído, a alguns metros de mim, um adepto do meu clube com um very light fumegante cravado no peito. A visão da clareira que à sua volta se formou ficar-me-á para sempre na memória. Assim como o sentimento de indignação que, naquele momento, tomou conta de mim e de todos os que comigo ali estavam. O disparo, logo se percebeu, viera do extremo oposto, onde a claque do Benfica enchia a bancada. Foi o ódio que fez disparar o gatilho. E um homem morreu simplesmente porque foi assistir a um jogo de futebol. Um jogo que, aliás, incompreensivelmente continuou – a perda de uma vida humana não foi o suficiente para se interromper a “festa do futebol”.

Recordo o triste episódio porque, há dias, a claque do Benfica parece ter decidido atiçar a claque do Sporting reproduzindo o som de um very light. Parece que há ainda quem veja na morte de um adepto de um clube rival um momento de glória, um troféu ou, pelo menos, um motivo de descomprimida provocação. Não é, contudo, uma inovação de uma claque em particular. Poucos dias antes, a claque do Futebol Clube do Porto achou por bem desejar que toda a equipa do Benfica morresse num acidente de aviação – aludindo à tragédia do clube brasileiro Chapecoense. O ponto não é a generalização, até porque espero que, nestas claques, a maioria dos seus membros não se reveja nestes cultos da morte. Mas, mesmo que sejam poucos o que se revêem, facto é que esta gente frequenta recintos desportivos.

Repúdio? Sim, há que apontar o dedo às claques. E sim, há que censurar o culto de ódio e violência predominante nos seus cânticos e comportamentos (cadeiras arrancadas e incendiadas nos estádios tornou-se rotina). Mas fixar o olhar nas claques é alinhar numa farsa simplista e conveniente. Simplista, porque identifica um único responsável por um fenómeno que parece ter-se enraizado no futebol em geral. Conveniente, porque desvia as atenções da raiz desta cultura de ódio, que está nos clubes e nas instituições desportivas, sendo as claques apenas a sua manifestação mais explícita.

Sejamos claros: a violência no futebol culmina nos estádios, mas concebe-se fora do campo. Nos clubes grandes (sem excepção), através do discurso crispado dos seus dirigentes, que não medem as palavras nem olham a meios para atacar os adversários – acusações, insinuações, insultos, ataques pessoais, processos, todas as semanas há um novo episódio. Nos programas de comentário desportivo, cujos intervenientes incendeiam os debates usando de uma agressividade verbal que em mais nenhum contexto se aceita na televisão portuguesa. Na comunicação social, que adora picardias, polémicas e ajustes de contas – nada melhor para vender jornais ou somar espectadores do que exibição de ânimos exaltados. E nas instituições que gerem o futebol português, enfraquecidas, passivas, permissivas, e incapazes de impor as regras.

Anda tudo indignado com o culto de ódio das claques mas, no final de contas, quem emite os comunicados a censurar as suas manifestações de violência é, na prática, quem as financia e mais incentiva. Está-se a matar o futebol. E estamos, assim, a regressar a um passado que já tínhamos por distante, no qual assistir a um dérbi no estádio correspondia a uma actividade de risco. Não é destino ou fatalismo cultural do sul europeu, é uma escolha consciente. Há cerca de vinte anos, em Inglaterra, perseguiram-se as claques, expulsaram-se os desordeiros dos estádios, reforçou-se a autoridade das instituições, castigaram-se os clubes coniventes com abusos, impôs-se uma mordaça às sucessivas críticas à arbitragem, travaram-se os excessos dos dirigentes. O que se salvou? O futebol. Por cá, só não se faz igual se não se quiser.

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