Os professores que exercem o seu magistério por paixão e com sentido de missão sabem que aprendem mais com os alunos do que aquilo que algum dia lhes poderão ensinar. Ser professor é uma vocação. Um sacerdócio. Um modo de vida.

Nem todos temos a experiência de ensinar ou dar aulas, mas todos tivemos a experiência de ser alunos. E temos memória dos bons e dos maus professores. Uns e outros marcam-nos para a vida. Os bons, porque nos inspiraram e continuam a inspirar; os outros porque deixaram más recordações e até algumas cicatrizes. Falo de feridas que não se vêm nem sangram, mas doem tanto ou mais do que essas. Falo de maus tratos psicológicos e também das fracturas morais que resultam quando nos partem por dentro e deixam com suspeitas sobre nós mesmos, ou sobre as nossas capacidades, especialmente quando essas dúvidas são levantadas por professores que insistem em inferiorizar os alunos.

Os maus professores humilham mais do que castigam; expõem publicamente as falhas em vez de ajudarem a corrigir os erros; dão feedbacks de arraso quando podiam tentar segurar, ou até salvar, a aluna ou o aluno de afundar. Demasiado distantes ou autoritários – e, quem sabe, inseguros – blindaram os seus sentimentos para sobreviverem a turmas abrasivas que têm ou tiveram em escolas erosivas, e a maneira como agem ou reagem fere a sensibilidade dos que não têm culpas. Ser professor pode ser muito difícil e muito desgastante, mas também pode ser muito compensador porque o impacto das suas palavras e atitudes nunca é inócuo. Negativo ou positivo, fica activo para sempre.

E é por ficarem a fazer eco pela vida fora que alguns professores deviam ter mais cuidado com o que dizem e fazem, mas também com a maneira como o dizem e fazem. Um bom professor sabe que, tal como um médico, tem uma parte expressiva da vida dos seus alunos nas mãos. E do seu futuro. Mais, sabe que também os pais esperam muito da escola e depositam nele uma confiança quase desmedida. Porventura excessiva, mas ainda assim uma confiança de que será capaz de ensinar aos filhos matérias e competências que estão para além daquilo que está ao alcance das famílias modernas, na vertigem dos tempos que correm.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quem ensina por paixão e vocação sabe tudo isto e muito mais. Sabe inclusivamente que a motivação para se manter no ensino raramente vem de fora. O reconhecimento superior ou dos pares pode ser tão escasso como o vencimento e, assim sendo, o caminho mais seguro é o da auto-motivação. Dão sentido àquilo que fazem e empenham-se dia após dia, mês após mês, ano após ano por amor à causa, ao conhecimento e ao desenvolvimento. Neste caso, também por amor aos filhos dos outros.

Sei de professores incríveis, chamados a leccionar nas piores escolas, nas circunstâncias mais adversas, que foram capazes de dar a volta a tudo, a começar pelos alunos. Estou a pensar no inenarrável de uma professora grávida a quem um rapaz deu um pontapé na barriga em plena aula, há uns anos atrás. A professora ficou de baixa e não voltou mais àquela escola, mas como as matérias tinham que ser dadas e o programa tinha que ficar cumprido foi rapidamente substituída. Passado um par de meses o novo professor tinha a turma na mão. Contra todas as expectativas o professor agarrou os alunos e foi capaz de os confrontar positivamente com as suas atitudes negativas. No fim do semestre tinha uma fila de novos alunos a quererem inscrever-se nas suas aulas e nunca mais deixou de ter um ascendente construtivo sobre os estudantes de uma escola estigmatizada por ser considerada uma das piores na área da grande Lisboa.

Não precisamos de ver filmes como O Clube dos Poetas Mortos para perceber a influência dos professores. Basta-nos recorrer à experiência e reavivar a memória. Os bons resgataram-nos e restauraram-nos a confiança, enquanto os maus deixaram em nós essa fractura da insegurança que permanece pela vida fora e fica particularmente exposta em fases de maior vulnerabilidade.

Os bons professores ouvem os seus alunos, chamam-nos pelo nome, conhecem os seus talentos e inclinações. Orientam-nos, ajudam-nos a pensar, dão-lhes ferramentas essenciais e critérios de discernimento que vão muito para além daquilo que está contido nos manuais de estudo. Identificam competências e exercem uma influência positiva em momentos-chave como aqueles em que têm que fazer escolhas académicas ou opções profissionais. Um bom professor, que conhece bem os seus alunos, é capaz de antecipar para eles caminhos ajustados ao seu futuro. Aconteceu comigo e devo a dois extraordinários mestres mais de metade da minha realização profissional.

Hoje em dia sou eu que aprendo com os meus alunos. Uma década a ensinar universitários tem-me levado incrivelmente longe no conhecimento das suas necessidades, dons, talentos e competências. Dizer que todos os dias aprendo com eles pode parecer banal ou soar a frase feita, mas é a mais pura das verdades. Embora todos os anos tenha uma ou duas turmas em escolas e liceus onde dou cursos pontuais, a esmagadora maioria dos meus alunos são universitários e têm entre 18 e 20 anos. Aprendo com todos. Com os mais novos descubro realidades e criatividades que me interpelam por serem experimentadas, reveladas, por rapazes e raparigas muito novos a quem facilmente se colam rótulos que os reduzem à sua expressão mínima.

Sempre que ouço alguém dizer “esta geração está perdida” ou “antigamente os alunos eram mais disciplinados” apetece-me desafiar essas pessoas a assistirem a uma aula. Não necessariamente uma aula dada por mim, note-se, porque há milhares de professores muitíssimo melhores, e eu própria aprendo com eles, com os seus métodos e atitudes, mas uma aula com esses mesmos rapazes e raparigas a quem facilmente julgam e apontam o dedo. Se os vissem motivados e a revelarem-se no seu melhor, multiplicando talentos e adquirindo competências, focados e interessados porque os professores os souberam inspirar e contagiar, ouvindo-os e dando-lhes uma atenção personalizada, perceberiam que não há gerações perdidas e, muito menos, rótulos para colar.

O facto de conhecer pessoalmente alguns professores como aquele que referi e outros que criaram projectos com os alunos (para inspirar os professores!) associado ao facto de atravessar mundos tão distintos como a faculdade de economia de uma das melhores universidades do país, mas também o universo escolar da Cova da Moura e bairros vizinhos, dá-me uma boa visão de conjunto. Tenho encontrado raparigas e rapazes verdadeiramente excepcionais em todos estes perímetros académicos. E claro que também sei de professores desgastados e também tenho encontrado muitos alunos difíceis, desinteressados, apáticos, desafiadores e até agressivos. Todos os professores encontram de tudo e nenhum de nós está protegido por dar aulas aqui ou ali. Muito pelo contrário!

Na Cova da Moura, no Zambujal, na Boavista e em muitos outros bairros periféricos entre Lisboa e a Amadora tenho tido contacto próximo com jovens capazes de se elevarem acima das suas circunstâncias e se revelarem no seu melhor graças à influência de professores motivados e motivadores, cheios de valores, capazes de os incentivar e não os deixar desistir. Na universidade encontro uma grande diversidade e embora alguns estudantes (felizmente muito poucos!) vivam exclusivamente centrados em si mesmos e nas matérias, numa competição feroz entre pares, para se destacarem da multidão que corre para o mundo do trabalho, encontro mais jovens apostados em evoluir numa lógica ‘de bem em melhor’.

Por tudo o que fica dito e porque passo muitas horas por semana no campus universitário (por dar aulas a oito turmas, todas elas fabulosamente diferentes), sou eu que aprendo grandes lições sempre que os alunos dão provas de seriedade, maturidade, capacidade de superação, criatividade, humanidade e abertura de espírito. Aprendo com a inteligência crítica dos meus alunos, com o seu interesse e dinamismo, com a rapidez fulminante com que respondem aos desafios e com a maneira como põem a vida em perspectiva. Gosto do seu humor inteligente e impressiona-me a capacidade de se entre-ajudarem e acolherem sempre que o fazem com autenticidade, sem julgamentos nem preconceitos.

A velocidade com que processam a informação e integram o conhecimento, fazendo ligações com a sua própria experiência, é fascinante. São a geração Erasmus, mas também das viagens low cost, estudam fora e viajam constantemente. Tudo isto lhes acrescenta mundos e capacidade de interpretação de realidades muito diversas. Falamos disto nas aulas e ouço com gosto as suas hitórias. Adaptam-se com uma facilidade enorme e sabem que o mundo lhes exige tanto a capacidade de acreditar como a de fazerem os outros acreditar. Empreendedores, têm visão, arriscam e criam impacto, mas aquilo que mais me surpreende e marca é a sua força de superação.

E os traços de humanidade, quando se lêm nas linhas e entrelinhas dos seus trabalhos individuais e de grupo.

E é por tudo isto que aprendo mais do que algum dia conseguirei ensinar. Sei que não acontece só comigo porque confiro toda esta realidade com os meus pares. Na verdade aprendemos uns com os outros uma matemática infalível: a da confiança que gera sempre mais confiança.