Filipe Nyusi, Presidente da República de Moçambique, visita Portugal por estes dias. No seu país, vou ouvindo o que os seus conterrâneos pensam do presidente recém-empossado. São menos do que exploratórias as conversas que tive. Nem sequer as analisei com cuidado. Posso, no entanto, retomar teses anteriores relativamente consolidadas.

Samora Machel (1975-1986) e Joaquim Chissano (1986-2005) há muito que aparecem nos ‘discursos da rua’ como o alter-ego um do outro. O primeiro é, em geral, tido como próximo do ‘povo’, preocupava-se com a igualdade e promovia os estudos. Uma expressão clássica é: ‘Machel levava mesmo os filhos dos camponeses para estudar em Cuba, na Alemanha ou não sei aonde”. Porém, esse mesmo Samora Machel permanece colado aos epítetos de violento ou agressivo. Se continuasse, ‘isto podia arder tudo’.

Joaquim Chissano, pelo contrário, é o presidente da paz, do diálogo, aquele que se soube ‘aproximar-se do outro’ (Dhlakama/Renamo) para ouvir e ‘viu que o povo estava a sofrer’.

Se Samora Machel é o pai fundador, o carismático por excelência, por seu lado Joaquim Chissano foi também capaz de construir um poder carismático. Mesmo tendo dirigido a guerra civil (1976-1992) no momento mais violento, teve a habilidade de remeter o rótulo da violência e da guerra para Samora Machel (falecido em 1986) e para Afonso Dhlakama, líder da Renamo. Ou seja, o diplomata soube preencher um espaço de legitimação política vazio antes dele, o da não-violência, o da paz, o do diálogo. De tal modo o fez que hoje, na gente comum moçambicana, esses valores vieram para ficar. O contrário, a guerra, será sempre qualquer coisa ‘entre eles’, os do poder.

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O desfavorável em Joaquim Chissano era o ‘deixa-andar’, isto é, com ele o poder tornou-se elitista, palaciano, desinteressado de preocupações sociais. Claro que a representação do poder resulta do que o poder é, mas também das expectativas que as pessoas depositam nele. É um compromisso no qual a verdade é uma representação, isto é, escorregadia, subjetiva. O que vou verificando à medida que o tempo passa é a relativização do lado negativo da governação de Joaquim Chissano e a valorização do lado positivo, o do diálogo, da paz.

Nestes dias, sem que possa ainda avançar com teses sustentáveis, constato um quase apagamento do legado de Armando Guebuza (2005-2015) que, provavelmente, passará à história apenas como mais um Presidente de Moçambique e pouco mais. Terá sido a presidência menos significativa para o discurso da rua. Nesse mandato não se fez a paz, não fez a guerra, nada de relevante sobrou. Ao contrário do que transparece na imprensa ou nas elites, nem sequer é relevante a saliência da corrupção enquanto atributo específico da governação de Armando Guebuza.

A impressão é a de que os discursos da rua tendem mais facilmente a fazer a ponte entre Joaquim Chissano (1986-2005) e Filipe Nyusi (desde 2015), como se o último fosse herdeiro histórico do primeiro. Cheguei à cidade de Quelimane, capital da Zambézia, na semana em que o atual presidente moçambicano visitava a cidade e a província. Do seu discurso está a passar para a rua com relativa eficácia a ideia de que ele quer mesmo a paz, bem como que irá entender-se com Afonso Dhlakama, o velho líder da antiga guerrilha.

Afonso Dhlakama e a Renamo nos anos recentes têm atuado na fronteira entre a paz e a guerra. E se Filipe Nyusi, da Frelimo, assumiu a presidência condicionado por ameaças de retorno à guerra, a verdade é que Afonso Dhlakama e a Renamo não vivem menos pressionados por um contexto social em que a guerra é fortemente recusada, mesmo pelos que não se identificam com a Frelimo. Essa pode ser interpretada como uma vitória de Joaquim Chissano. O futuro dirá, até porque é uma sociedade com plena consciência de ter problemas de sobra: pobreza, criminalidade, desemprego, acesso à água, caos urbanístico, saúde, ensino, por aí adiante.

Neste contexto e pelo que vou conhecendo de Moçambique e dos moçambicanos, era bom que a visita de Filipe Nyusi a Portugal significasse não apenas a repetição do ritual das relações institucionais entre o antigo país colonizador e o antigo país colonizado, mas também marcasse a abertura de relações quotidianas mais genuínas povo a povo. Há muito que a bola está, e cada vez mais, do lado dos moçambicanos. São os moçambicanos que devem fazer muito mais.

Um dia surgirá um primeiro presidente moçambicano, não sei se o atual, que reconhecerá a importância de uma aproximação mais convincente de Moçambique a Portugal também para a sua afirmação política e social, enquanto presidente, no seu próprio país. Depois da defesa radical da independência (Samora Machel), da orientação genuína em prol da paz (Joaquim Chissano e que Filipe Nyusi tenta retomar), agora ou no futuro, capitalizar as relações com Portugal representa o mais relevante espaço de afirmação de um poder carismático na sociedade moçambicana. Posso, para já, estar solitário nesta tese, para mim é óbvia. É uma questão de tempo. Basta que se perceba que numa sociedade não são apenas as elites que pensam (políticos, jornalistas, académicos, etc.), mas também as pessoas comuns. Até porque, nestas matérias, as elites não são exemplo de coisa nenhuma. Moçambicanas ou portuguesas.

Investigador