Demasiado depressa as nossas atenções se desviaram da Grécia, do Syrisa e de Tspiras. Tsipras encontrou-se em Berlim a convite de Merkel, a 23 de Março deste ano. Regressou a Atenas, aparentemente convertido à realidade, ao realismo e ao pragmatismo. De facto, nunca deixara de ver a primeira e nunca lhe faltaram estas duas qualidades. Apenas se fingira romântico e revolucionário. Nunca foi romântico, e a revolução sempre foi para ele meramente instrumental: um meio de se alçar ao poder a todo o custo. Isto deveria ter-se tornado evidente logo que, após aprovação pelo Parlamento do terceiro resgate (14.8.15), em tudo parecido com o segundo contra o qual insurreccionara a Grécia, de imediato se demitiu (20.8.15) e convocou eleições para 20 de Setembro. Ganhou-as com 35.5% dos votos e repetiu a aliança com os Gregos Independentes (3,67%), o que, graças ao generoso bónus em deputados conferido pela lei grega ao partido mais votado, lhe permitiu arrebanhar uma confortável maioria absoluta de mandatos.

Ainda antes das eleições, caiu-lhe do céu a cisão da ala ultra-esquerdista do Syrisa, um pequeno lote de ingénuos, crentes de que esta generosa coligação de esquerda estava serviço do povo e da revolução social. Tsipras, reeleito, reocupou o cargo de primeiro-ministro e fez um governo seu. E o mundo, ou pelo menos Portugal, deixou-o a ele e à Grécia entregues ao cumprimento obediente do terceiro resgate, à dolorosa digestão da terceira vaga de austeridade. Uma parte da nossa esquerda doméstica ficou algo estonteada com a acrobática cambalhota do herói. Não assim a que já estava e funcionava no mesmo registo de pragmatismo absoluto. Marisa Matias explicou logo no dia da vitória eleitoral de Tsipras: “Evitou-se o pior cenário possível, que era pôr no poder as forças partidárias da Troika.” O pior cenário possível, por conseguinte, não era submeter o martirizado povo grego ao terceiro resgate, era o radicalismo revolucionário perder o poder. Eis a grande lição a tirar da experiência grega.

Já tudo foi dito sobre o desbragado oportunismo de António Costa, cuja urgente e desesperada sobrevivência política pessoal se sobrepôs a todas as considerações de prudência estratégica, de coerência política, de um módico de escrúpulo moral e de salvaguarda do superior interesse do País que, como as peripécias parlamentares em poucos dias já mostraram, está agora nas mãos do PCP e do Bloco de Esquerda. Porém, se esta deriva esquerdista do PS surpreendeu o País, a verdade é que ela só pôde vingar porque não constituiu um implante absolutamente artificial na configuração ideológica do Partido Socialista. Desde o 25 de Abril, quando apareceu à luz do dia em solo português, que o PS albergou sempre no seu interior, desde então e até ao presente, facções ou embriões de facções de extrema-esquerda de vário pelo. A cisão aberta por Manuel Serra logo no primeiro Congresso do PS, realizado em Lisboa em Dezembro de 1974, que pretendia impor uma linha revolucionária a um partido que o não era, foi apenas a primeira de uma série de afastamentos, auto-exclusões e erradicações de correntes ou simples grupos radicais e anti-democráticos que germinavam naturalmente num partido de esquerda democrática por razões não impossíveis de compreender.

Mário Soares era burguês e apreciava a “liberdade burguesa” não só para ele e os seus, mas para todos. Porém, era de esquerda, era socialista, e a liberdade de pensamento e expressão que reinava dentro do PS podia ser usada, e foi usada, para tentar “obrigá-lo” a ser de esquerda, e “não burguês”… Muitos dos esquerdistas, trotskistas, marxistas-leninistas, sindicalistas da CGTP e comunistas desavindos com o PC beneficiavam de livre trânsito dentro do PS, até ao limite em que o seu activismo tocava as raias da conspiração, fazendo perigar os equilíbrios internos que asseguravam a primazia da linha matricial do partido, inequivocamente anti-comunista e demo-liberal, social-democrata e socialista democrática, três colorações de imprecisa diferenciação conceptual cuja mescla constituiu sempre a essência “anímica” do pluralismo característico do Partido Socialista, e ao mesmo tempo o delimitava: o PS não era um “saco de gatos” ou um “albergue espanhol”.

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Porém, sucessivas auto-exclusões ou deliberadas erradicações nunca expurgaram, ao longo dos anos e das décadas, as raízes profundas da pulsão esquerdista de uma parte, embora subalterna, do PS. Este fora sempre a fronteira da liberdade… mas, no fundo e em rigor, a fronteira sempre passou pelo interior do próprio partido. Entre essas duas partes, intrometeu-se a partir de 2005 uma “cunha socrática”, que baralhou a divisão grosso modo dicotómica do partido e transtornou os seus equilíbrios internos. Perdido o poder em 2011, a crise económico-financeira e a austeridade, na ausência de uma liderança forte, abriram a porta a um reforço da ala esquerdista, enrijecida pelo pelotão dos órfãos do engenheiro, que não podiam perdoar a António José Seguro a tentativa de demarcar o PS da herança do seu “querido líder”. No PS “galambizado” germinaram e desabrocharam os Nunos Santos. O espaço estava criado, a porta estava aberta e António Costa podia entrar, na condição de que devolvesse o poder ao partido. Mas um partido que já não era o Partido Socialista fundado por Mário Soares. A sua tradicional marca genética anti-comunista foi sacrificada às aflições de António Costa, mas não só: foi também sacrificada às ambições de um novo esquerdismo de circunstância que exige dele o poder – a qualquer custo. Na verdade, é mais exacto falar de um radical pragmatismo travestido de esquerdismo, um pronto-a-vestir ideológico meramente instrumental e acidental.

A oportunidade de Tsipras conquistar o poder e fazer do Estado um bastião privado para a sua parentela surgiu pela direita; o que lhe interessava era esta e o seu próprio poder autocrático. A de Costa surgiu pela esquerda mas o retorno foi muito mais “poucochinho”. Tsipras, ao menos para já, não está nas mãos de ninguém. Costa, como condição de durar, está e estará nas mãos do PCP e do Bloco. O apparatchik Arménio Carlos ainda hoje ameaçou na capa do Público: “A melhor maneira de este governo garantir a estabilidade é cumprir as promessas que fez.” António Costa, com o seu talento “tacticista” que já quase toda a gente lhe reconhece e enaltece, conseguiu chegar a primeiro-ministro, que era o mínimo indispensável para se aguentar à frente do partido. Porém, na realidade e ao contrário de Tsipras, entre a chantagem da extrema-esquerda e as exigências de Bruxelas, tem muito pouco poder. Mas tem precisamente o único poder de que precisa, que é o de cartelizar o Estado e distribuir “jobs for the boys”. Não apenas meros empregos com ordenado mensal, mas também lugares estratégicos para fazer imediatos ou futuros negócios.

Sempre houve disto? Sim, mas numa escala muito menor, o que faz a diferença. A semente da desfiguração ideológica do PS começou com Sócrates. O engenheiro tanto era estatista como social-democrata ou neo-liberal. Era o que fosse preciso para fazer jorrar dinheiro a rodos. A “cunha socrática” encravada entre a esquerda e a direita do PS vive envolta na mesma nebulosa ideológica; hoje dissolveu-se no combustível que faz mover o “costismo”. Para se perceber bem o que é o “costismo”, para além da pessoa, dos métodos e das circunstâncias do próprio Costa, basta atentar na atitude dos barões socialistas ricos de há muito ou ricos de há pouco. Almeida Santos, essa referência tutelar do PS, assiste a tudo impávido e sereno; quem cala consente. Jorge Coelho diz de António Costa o pior possível em privado e enaltece-o na televisão. O “costismo” não os ameaça, favorece-os. O “costismo” significa o dobre a finados pelo Partido Socialista fundado por Mário Soares e triunfalmente defendido por Mário Soares contra o Partido Comunista. E anuncia o nascimento de um novo partido desembaraçado de identidade ideológica, pronto a envergar qualquer ideologia que lhe sirva de instrumento para se alçar ao poder. O poder pelo poder, traduzido no deleite de mandar e simbolizado pelo carro preto com motorista e um cortejo de assessores; e sobretudo o poder como instrumento e oportunidade para “subir na vida” e fazer dinheiro.

Le roi est mort. Vive le roi!