1. Há muita política pela frente. Não me lembro de recentemente haver época tão farta. Depois da (desgraçada) surpresa do Brexit que apanhou mais de meio mundo de chofre e de choque, a Espanha segue a pisada da (boa) surpresa. O Partido Popular ganhou as eleições espanholas, aumentando votos e deputados. Todos perderam para o PP. A subida popular, não apanhada em radar nenhum, e a queda do Podemos, não capturada em sondagem alguma, transferiram o eixo político para a direita, arredando-o da esquerda onde parecia bem ancorado: há meses que discussões, perguntas ansiosas, respostas convictas, análises intermináveis, se circunscreviam ao duelo PSOE/Podemos e por aí quase se ficavam. O PP era um velho armário de família, encostado a uma parede, mesmo que sempre favorito nas tais sondagens. Eu própria (e peço desculpa ao leitor por isso) entrei nesse jogo, que o ar do tempo às vezes sopra forte e as malditas sondagens podem tornar-se obsessivas.

Esta deslocação do cerne da política da esquerda para a direita — primeira surpresa –, traduzindo a alteração ocorrida na cabeça dos eleitores espanhóis, mostra bem que o conteúdo das urnas no inverno de 2015 e no verão de 2016 foi diferente tornando irrisórias ou ressentidas algumas análises do “tudo na mesma”. (À hora a que escrevo, domingo, é muito o que se diz.) É justamente essa diferença, que dará novo fôlego ao PP, tonificará uma saúde partidária meia murcha e ferida de asa, e conferirá a Raroy mais força negocial: nem a vitória dos Populares é disfarçável nem Raroy parece contornável. Se chegarão – ele, as suas tropas, o seu núcleo duro – a bom porto governamental é o tema do segundo acto da peça iniciada hoje à noite. Mas mesmo que o segundo acto se revele um fracasso, já nada nem ninguém alterará o guião do primeiro. Convém porém lembrar a propósito outra “diferença”e grande, sobre esse “bom porto”: os políticos espanhóis estão pura e simplesmente “obrigados” a descobrir-lhe o caminho. A pressão é hoje brutal: da Casa Real à sociedade civil, das confederações patronais e sindicais aos meios diplomáticos, os avisos, fazem-se ouvir. Ninguém está a brincar. E o povo está tão exausto quanto nauseado com o carrossel dos jogos florais. Sim, desta vez é diferente. E por isso, mais provável encontrar o norte do bom porto.

2. Em Dezembro de 2015, em Madrid, foi quase como se tivesse recebido um curso intensivo do Podemos, tantas vi e ouvi. Não me vindo a jeito ser cliente, podia ter simpatizado com isto ou aquilo, ter retido uma ideia, uma atitude, um gesto, um fulgor, uma qualquer “diferença”, algo enfim de sedutor, de verdadeiramente novo, a favor deles. Não ia até o Podemos acabar de vez com o bi-partidarismo em que a Espanha “estiolava”? Ia.

Percebi que se viam como messiânicos, querendo salvar a Espanha e o mundo (pagos pela Venezuela), mas simpatizando pouco ou nada com as leis e regras do Estado de Direito: por eles expulsariam de vez a direita do universo político espanhol (e de todos os outros universos). Praticavam a ambiguidade, exibiam arrogância, eram exímios no desprezo. E também eram hábeis e lestos. Perigosos, numa palavra. A agenda era a vulgata marxista de sempre, revista pelo rabo-de-cavalo. (Ao pé deles, Alberto Rivera pareceu-me, nesse agora já tão longínquo inverno de 2015, um menino de coro: apesar de politicamente ainda algo titubeante, era um patriota lavado e penteado.)

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Mas o Podemos marcava a agenda politica e deixava impressão digital no país, o que aumentava o perigo para a Espanha e para a Europa, inclinada como a Torre de Pisa para amores extremistas. Nunca mais perdi o Podemos de vista.

Seis meses depois a descida dos votos baixou-lhes a temperatura política, empalideceu-lhes o fulgor e colocou-lhes as ambições em banho-maria (sim, atenção: só em banho-maria). Não serei facciosa se disser que foi uma notável derrota: sempre em crescendo nas bocas do mundo e nas sondagens, com meios e apoios, com desenvoltura e arrojo, e agora unidos com os “Unidos”, seria expectável mais. Não foi assim.

Cada cabeça ditará a sua sentença: uns que pode ter sido o efeito Brexit; outros que pode ter sido o (indisfarçável) mal-estar que se vive hoje na Europa, afastando tentações e aventuras; outros ainda que pode ter sido a ideia de segurança, sempre aliada a eleger o que “se conhece” em detrimento do “desconhecido”. Seja o que for e como for, o PSOE, mesmo se enfraquecido, dividido e mal dirigido por Pedro Sanchez, ditará o jogo à esquerda. Não é dizer pouco. Qualquer pessoa normalmente constituída preferirá um PSOE doente a um Podemos viçoso. Em Espanha, e qualquer que seja a arquitectura ou a configuração do amanhã governamental, salvou-se o que tinha absolutamente de ser “salvo”: competirá aos socialistas democratas, pró-ocidentais, pró-UE, do PSOE, a liderança da esquerda espanhola.

Esta noite vamos poder dormir. Ao contrário daquela noite sinistra de quinta para sexta feira ultimas, onde adormecemos num mundo e acordámos noutro. Pior.

3. Há muitos, muitos anos (é o que faz agendas velhas e notas garatujadas), lembro-me de Cavaco Silva, num estival almoço privado ter aludido aos seus encontros (igualmente estivais) com Felipe González, então chefe do governo espanhol, quando ambos se encontravam de férias, e ora em Espanha, ora em Portugal, e conversavam ambos, sem agenda nem protocolo, sobre as coisas deste mundo. E de González, num desses encontros, ter relatado ao seu congénere português o puro horror que vivera, corria o ano de 1986, quando convocara um referendo sobre a permanência da Espanha na NATO. Suara frio, não dormira, consumira-se em ansiedade: “e se…?”.

Recorde-se que face à crispada hostilidade contra a América e a NATO, que encontrara nas hostes do seu partido quando ascendeu a secretario geral do PSOE, González , que era a favor da Nato, mas era também um político responsável entendeu necessário que o PSOE (e a Espanha) legitimassem democraticamente a continuação desta pertença: “NATO, sim ou não?”.

A história acabou bem por uma unha negra, os espanhóis continuam na NATO e não se sabe quem intimamente se terá atormentado mais, se Felipe Gonzalez no século passado (apesar do happy end), se David Cameron neste século (apesar do unhappy end), mas… os referendos são instrumentos perigosos. Populistas. Sabe-se sempre como começam, nunca onde desaguam. Dividem sem ter esclarecido, ganham-se e perdem-se por unhas negras, e também por isso dividem os países ao meio. São absurdos. E sim, repito, perigosos: não há intermediários, nem intermediação e nesse sentido um referendo dificilmente consubstancia a melhor avaliação ou “averiguação” democrática. O passado recente dos referendos no seio da UE (o primeiro foi em França em 2005), de tão eloquentemente infeliz, deveria constar como vacina ou lição, mas nem uma coisa nem outra: aí está uma nova fila de países a clamar por consultas e não interessará muito saber se será apenas o efeito de contágio, se ainda pior. Interessa que todas as linhas vermelhas estão a ser pisadas.

4. A liderança, os chefes, os altos responsáveis da União Europeia também não pisam outra coisa senão linhas vermelhas desde o dia 23. Reagiram com incrível acinte e acidez à escolha dos ingleses, fazem ameaças despropositadas, acenam miseravelmente com “divórcios litigiosos”, exigem pressa (pressa, santo Deus?), como um senhorio arrogante a inquilinos subitamente tomados de ponta.

Convocam as reuniões erradas a três ou a quatro, enganam-se de interlocutores, deixam David Cameron e a Grã-Bretanha de fora dessa convocação.

Sim, há muita política pela frente. Mas gente para a pensar e praticar na “Europa” haverá?

5. Não tenho felizmente muita política pela frente (se fosse a falar nas constantes linhas vermelhas, políticas, formais e de substância, constantemente pisadas entre nós, então é que não dormiria mesmo). Mas tenho pela frente um cabo de (outros) trabalhos, com palavra dada. Voltarei em Agosto! Até lá.