Vou confessar que sempre adorei as “causas”. Para vos conseguir explicar o porquê tenho que voltar à minha juventude quando entrei para a Faculdade de Ciências, com as hormonas a gritar por todos os poros. Tipos como eu não faziam grande sucesso entre raparigas. Nunca fui propriamente do tipo atlético, vestia horrivelmente e sofria de alguma, muita, timidez. Restava-me tentar que a conversa levasse onde o físico não levaria, mas não seria a Física a prestar esse papel. Mecânica quântica ou optoelectrónica nunca foram temas que conseguissem levar uma moça daquela altura a interessar-se por um imprestável como eu e rapidamente entendi que um “Então, o nosso Benfica?” não funcionava nessas circunstâncias.  Não fossem as “causas” a fazerem-me passar por um intelectual de sensibilidade humana profunda e a minha vida teria sido uma tragédia solitária. A minha e a de dezenas de jovens como eu que fomos castigados com uma adolescência cruel nessa matéria e que víamos naquele pacote de causas modernaças a oportunidade de nos mostrarmos versados em matérias, que não interessando nem ao menino Jesus, nos permitiam entrar no círculo restrito das jovens de bom aspeto.

E se havia temas que conseguia falar apaixonadamente durante horas era de aborto, eutanásia, utopias marxistas, virtudes da luta de classes e outras patranhas derivadas. Ainda hoje acredito que ninguém é revolucionário aos 20, as nossas colegas é que nos obrigam a enveredar pelo caminho mais fácil. Claro que há aqueles que levam a coisa longe demais, passam a acreditar mesmo e acabam bloquistas ou coisa parecida. Mas acredito que quem, como eu, já passou dos 25 há algum tempo percebe exatamente aquilo que estou a dizer.

Por isso imagino que a resposta que a nossa sociedade foi dando a essas causas, afinal já passaram 50 anos desde o Maio de 68, tenha trazido dificuldades adicionais aos nossos jovens sucessores na academia. Até aqueles que levaram a coisa longe demais estão perfeitamente integrados no establishment em que as “causas” se tornaram o novo normal. Incluindo até algumas com que nem sonhávamos na altura. É só nesse contexto que consigo entender que apareçam agora pessoas a defender uma “causa” como a do Rendimento Básico Incondicional (RBI). Sim, estou contente que os jovens estudantes possam tornar-se mais agradáveis às jovens nos argumentos da justiça social e da distribuição igualitária, mostrando-se assim com uma profundidade humanitária e uma sensibilidade filosófica que não conseguiriam se fossem absolutamente honestos, ou se falassem de temas realmente importantes. Mas fico triste e francamente preocupado quando esse tipo de propostas aparece defendido por homens de barba feita, responsabilidades estabelecidas e idade para ter juízo.

Vamos separar as coisas para conseguir explicar. Todos nós temos acesso à distribuição incondicional da riqueza. Já existe, há carradas de anos. Há uns senhores que trabalham e pagam impostos para que todos tenhamos acesso a formas de capital cujo valor é tão alto que é difícil de quantificar. Todos temos acesso a médicos que estudaram anos e anos para nos dar o melhor de si, a professores que nos tentam transmitir o conhecimento acumulado de milénios, a polícias que metem o seu próprio corpo entre nós e as ameaças físicas à nossa pessoa. Essa riqueza é distribuída de forma incondicional. Há quem tenha acesso a melhor saúde, melhor educação e mais segurança porque tem mais meios próprios para o fazer; mas todos têm acesso a um mínimo que nem sequer é assim tão pequeno, apesar de todos querermos que seja maior.  Mas o rendimento, esse, é dado a quem o possa fazer e movimentou os seus próprios meios no passado para reunir esse capital. São os médicos, os professores, os polícias que recebem o produto dos nossos impostos pela simples razão que foram eles que estudaram e trabalharam para que esse capital possa ser transmitido àqueles que não têm possibilidade de lá chegar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Imagine-se agora que, por uma qualquer razão que não consigo entender, eu pego num monte de papel a que chamo de dinheiro e o dou, incondicionalmente, a todos. Vamos dar-lhe um valor para ser mais claro e a partir de amanhã todos vão receber 1 cêntimo sem perguntas, nem condições. Nesta fase, o meu caro está a pensar que estou a gozar consigo. O quê, vamos ser “generosos” ao ponto de dar 1 cêntimo como rendimento básico incondicional? Mas isso não compra nada! Pois, eu sei. A questão que quero que coloque é o porque é que não compra nada. Ora se fizermos umas contas com base no salário mínimo, o seu cêntimo não chega para 10 segundos de trabalho. Se tiver uma pessoa a atender-lhe um telefone, não chega sequer para o “alô”. Portanto, todas as pessoas que trabalham, na prática, já têm esse rendimento básico incondicional porque ninguém liga aos 10 segundos, faltam-nos as pessoas que não trabalham. Mas como esse cêntimo não dá para nada, ter ou não ter esse cêntimo no mês é exatamente igual, tirando para aqueles que quiserem poupar durante 100 anos para reunir 12 euros. E estamos a admitir que a redistribuição de capital que é feita com os serviços públicos se mantém, porque o contrário ainda é mais absurdo.

Assim fica claro que as condições atuais já são equivalentes a ter um RBI? Sim, é de 1 cêntimo. Mas deixem-me desenvolver sobre o valor em si. Para os da minha idade, 1 cêntimo equivale a 2 escudos de moeda do nosso tempo, 20 tostões do tempo dos nossos pais e 2 mil reis do tempo dos meus bisavós. Quantia que me deu para comprar alguns rebuçados na infância.  Ou seja, tempos houve em que esse cêntimo serviria para comprar trabalho de alguém. Já não serve porque o trabalho mínimo de qualquer pessoa hoje vale mais que esse valor, resultante da evolução natural da economia e de algumas medidas menos naturais relativamente ao dinheiro. As causas são irrelevantes, importante é que existe sempre um valor limite em moeda abaixo do qual a quantidade de trabalho comprada é zero. Não existe, que eu saiba, quem estude esse valor, mas com o exemplo do 1 cêntimo estou a assumir que quem me lê já percebeu que este montante, hoje visto como ridículo, está claramente abaixo desse valor limite.

Estabelecida que está a física do problema, resta-nos agora arbitrar o valor do RBI. E até dou ao leitor a liberdade de o estabelecer. 1000 euros? 40 milhões de euros? É igual. Quando eu o dou de forma incondicional associando-o a um valor de trabalho zero, o valor do RBI é agora o novo cêntimo porque vai comprar exatamente a mesma quantidade de trabalho que hoje 1 cêntimo cobra. A diferença é uma mera questão de unidades de escala, não uma diferença física. É o mesmo que medir uma coisa em polegadas e depois vir dizer que o comprimento em centímetros é completamente diferente. Não é, é igual, as unidades é que são diferentes. Como o cêntimo de hoje equivale a 2 mil reis do tempo dos meus bisavós, meter 40 milhões de euros de RBI é fazer com que o cêntimo de amanhã seja os 40 milhões de hoje. A diferença está na velocidade a que isso acontece. Dos 2 mil reis para 1 cêntimo passou um século de evolução económica (física), dos 40 milhões para o novo cêntimo seria instantâneo (artificial porque administrativo).

Dir-me-ão agora que se é uma mera questão de escala (é um pouco mais complicado dado que a economia não é um espaço plano, mas deixemo-nos de minudências), porque não deixar os senhores andarem a brincar às “causas”? Afinal, o simples facto de não entenderem a natureza do dinheiro não deve trazer grande mal para o mundo. Não é bem assim, há uma fração da sociedade que confia na velocidade com que o dinheiro se desvaloriza face ao valor trabalho. Imaginem que estabeleço um RBI de 1000 euros. Os reformados passam a receber incondicionalmente 1000 euros que, curiosamente, é a mesma quantidade que recebiam da segurança social devido aos descontos que foram fazendo. Que bom, passam a receber 2000 euros? Não, passam a receber o equivalente a 2 cêntimos porque o trabalho deles foi feito no passado. Tal como os bancos, o implementar um RBI desta dimensão é equivalente a ter uma taxa de juro instantânea infinita que levaria todos os créditos existentes a valer zero. Esta é matematicamente mais complicada de entender, mas dá para imaginar o cenário de destruição de todas as poupanças.

Como deve ser óbvio nesta fase, todas as outras ideias associadas de igualitarismo, justiça social, etc. ligadas à ideia de RBI são apenas sinais de que não se entendeu ainda nada dos fundamentos dos mecanismos económicos. Nenhuma medida meramente artificial como esta poderá gerar uma alteração física concreta. Repare-se que não estou a falar da distribuição de riqueza que estou a fazer ao entregar trabalho de médicos, professores e polícias, mas da ideia de RBI que, na prática, só distribui desgraça. Claro que, como não vivemos numa economia fechada, há sempre mundo para quem 1 cêntimo dos nossos vale para eles algumas horas de trabalho. Há sempre miséria no mundo pronta a ser explorada, mas imagino que não seja esse o objetivo aberto de um RBI, pelo menos para os seus defensores.

A ideia é em si tão absurda que acredito que quem a defende esteja a fazê-lo por solidariedade com aqueles que, como eu, chegam à idade adulta sem ferramentas para conseguir entrar pelo grupo restrito das colegas de bom aspeto. Mas como militante da coisa que fui, devo dizer-lhes que aquilo que aprendi é que elas só fingem que nos dão valor por isso. Também elas acham uma pantominice. Porque isto é tão básico, tão básico que só serve mesmo para substituir um “Então e o nosso Benfica?”.

(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
PhD em Física, Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association