Reconhecendo que há um avanço substantivo em matéria de proteção de animais, quer nas normas que impõem a proibição do abate de animais errantes como forma de controlo da população privilegiando a esterilização, quer na criminalização de maus tratos, vale a pena perceber se estamos a fazer tudo o que é necessário para que a lei salte do papel. Sabemos que o processo legislativo não foi acompanhado por um estudo de impacto. O país tem dois anos para se adaptar, obrigando a investimentos e a custos de funcionamento que vão disparar, recaindo sobre os municípios essa grande responsabilidade. É preciso saber se é mesmo para fazer e como fazer, ou vamos assistir ao jogo do empurra. O primeiro sinal orçamental de se alocar um milhão de euros, a pedido do PAN, pareceu uma falsa partida.

a) O ponto de partida

Temos desde logo um problema: a informação de que se dispõe é insuficiente e pouco fidedigna. A recolha feita pela Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) junto dos municípios está longe de corresponder ao que se passa na globalidade dos centros de recolha, muitos dos canis/gatis não estão licenciados e uma parte dos animais recolhidos por associações escapam às estatísticas oficiais.

A AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve acaba de receber um estudo onde o retrato mostra, a partir de inquéritos feitos aos municípios, um acréscimo de cerca de 30% relativamente aos números disponibilizados pela DGAV. As associações de defesa de animais ouvidas referem que a realidade é bem diferente, pecando os números por defeito. Para já o que importa é termos a noção do desfasamento e a dimensão do esforço que o país tem de fazer para corresponder a esta mudança radical.

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O cenário de partida não é nada famoso. Três décadas depois de haver a obrigatoriedade de instalação de canis/gatis apenas 140 municípios têm CRO – Centros de Recolha Oficiais autorizados (45% do total de concelhos), grande parte dos quais, curiosamente, são de tipo intermunicipal (13 CRO que associam 67 municípios e outros 23 têm protocolo com um dos 50 CRO de tipo municipal).

Conheço vários destes CRO, desde o canil da Comunidade Intermunicipal do Alto Minho até ao da Associação de Municípios das Terras de Santa Maria, em Oliveira de Azeméis, que recolhem entre 1500 e 2000 animais por ano, até ao Canil Intermunicipal de Torres Novas e Municipal de Lagos (com protocolo com Vila do Bispo), ambos com cerca de 300 animais por ano, bem como o canil de Sintra, uma das principais referências a nível nacional, por onde passam anualmente entre 2000 a 2500 animais. Todos eles são realidades distintas, na construção e no tratamento dos animais.

b) O caminho a percorrer

Estamos num momento chave de mudanças que devem ser vistas como uma oportunidade para redefinir o modelo, investir com racionalidade, no restrito respeito pelo bem-estar animal, incentivando boas práticas de funcionamento, com equipamentos concebidos por forma a permitir um ciclo de permanência e adoção/restituição dentro de protocolos socialmente aceites, em partilha com as organizações de defesa dos direitos dos animais.

Contas feitas, a partir do estudo algarvio, quer por aplicação da proporcionalidade direta da região no todo nacional, quer pela aplicação ao país da fórmula de cálculo e dos valores por boxe, o valor de investimento necessário para os próximos cinco anos para remodelação, adaptação e criação de novos Centros Oficiais de Recolha (CRO) será sempre superior a 30 milhões de euros (só para o Algarve serão 2 milhões de euros). Se a isso juntarmos mais 20 milhões de euros de acréscimo em custos operacionais (valor que tendencialmente deverá aumentar em função de requisitos cada vez mais exigentes), temos a expressão do que temos de fazer.

Considero que deve haver um planeamento, a partir das Comunidades Intermunicipais, para a criação de um modelo em rede que reforce a primeira linha de canis municipais e promova a construção de centros de recolha de retaguarda, de cariz intermunicipal, com níveis de conforto e espaço para animais que têm de permanecer mais tempo. Os modelos colaborativos permitem maior racionalidade, ganhar escala e ter equipas especializadas. Para além disso, podem prevenir espaços próprios para animais de grande porte. O investimento deverá ser partilhado entre as transferências do estado e os municípios.

c) O que tem de mudar

Para se avançar, é preciso uma mudança radical dos poderes instituídos e dos movimentos instalados em torno da defesa dos animais. É preciso estabelecer uma relação de confiança, de reconhecimento mútuo, de espaços bem definidos, de segregação de funções, sendo os Centros de Recolha Oficiais geridos pelos municípios, devendo ser partilhadas as atividades de adoção e educação para a cidadania com as organizações da sociedade civil. Também aqui é preciso evitar o jogo do empurra.

Deve haver uma aposta muito forte na esterilização dos animais. É verdade que relativamente aos animais errantes o efeito de controlo de população é muito mais rápido em gatos que depois de esterilizados podem voltar às suas colónias. De qualquer modo, a maior parte dos animais de companhia não são esterilizados, por razões diversas, e muito particularmente entre aqueles que são mais suscetíveis de serem abandonados. De qualquer modo, este é um foco muito importante para dar racionalidade ao novo modelo.

Deve ser reequacionado o sistema de registo e informação, quer nos centros de recolha oficiais, quer nos canis não licenciados municipais ou associativos. Este é um elemento essencial para dar confiança ao sistema. A par disso deve-se aumentar as ações de fiscalização.

Em suma, o país tem agora uma nova oportunidade para uma mudança radical de modelo, melhorando infraestruturas e as práticas em voga, imprimindo ao mesmo tempo racionalização e racionalidade na defesa dos animais.

Professor universitário, ex-deputado pelo Partido Socialista