É sempre bom ter algum cepticismo sobre a natureza humana. Se tivéssemos um pouco mais desse cepticismo creio que teríamos visto chegar a onda desestabilizadora a que chamamos “vaga populista” e que teve a sua mais recente manifestação nas eleições italianas.

Todos sabemos que Itália é um país de surpreendentes reviravoltas políticas a que é difícil aplicar as grelhas de leitura úteis noutros países e noutras democracias. Mas mesmo assim podemos identificar na vitória do eclético e anti-sistema Movimento 5 Estrelas e no triunfo da Lega sinais de um comportamento do eleitorado que já vislumbráramos noutras paragens. Temos é de saber lê-los correctamente.

Se pensarmos apenas na Europa e nas motivações dos que votaram pelo Brexit, dos que têm dado força a Le Pen em França, dos que apoiam a AfD na Alemanha, dos que votam em Viktor Orban na Hungria ou no PiS na Polónia, e agora dos que apoiaram a Lega e o M5S em Itália, julgo que encontramos como traço mais comum o desconforto com a imigração e a percepção pelos eleitores de que deixaram de controlar os seus governos e os seus destinos.

É muito comum falar dos deserdados da globalização económica e dos revoltados com as desigualdades, mas creio que mesmo existindo esses factores é em algo mais fundo e mais visceral que criaram raízes estes novos fenómenos políticos – eles são filhos do medo. Medo do que é diferente. Medo do que é menos previsível. Medo de terem perdido o contacto com “os de cima”, os que mandam, os que decidem.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há dois temas tabus nos debates bem-comportados sobre os designados “populismos”. O primeiro é a dificuldade em falar de imigração saindo do dogma da “livre circulação de pessoas”. O segundo é a quase impossibilidade de ouvir quem defenda que é mesmo necessário encontrar formas de devolver poderes e protagonismo aos Estados-nação.

O tema da imigração é aquele que mais faz franzir os sobrolhos e onde é mais difícil falar verdade sem ser acusado de xenofobia ou mesmo de racismo. Só que evitar a verdade é também ignorar as lições da História e desdenhar a natureza humana.

Comecemos pela História e pelas lições que dela podemos tirar, começando por recordar que uma das coisas que os Estados europeus aprenderam entre as duas guerras do século XX é que era mais pacífico e mais seguro viver em Estados-nação homogéneos – repito: homogéneos.

“No final da Primeira Guerra Mundial, as fronteiras foram redesenhadas e ajustadas, mas as pessoas foram deixadas nos seus locais. Após 1945, o que aconteceu foi precisamente o contrário: salvo uma excepção importante, as fronteiras foram mantidas mais ou menos intactas e, em vez disso, as pessoas foram deslocadas”, escreveu Tony Judt no seu magistral Pós-Guerra – História da Europa desde 1945 (págs. 48 e 49). Promoveram-se gigantescas transferências de populações, pois considerou-se que era impossível assegurar efectiva protecção às minorias sobreviventes. “A expressão ‘limpeza étnica’ não existia ainda, de facto, e estava longe de despertar desaprovação ou embaraços generalizados”, acrescentou mais adiante o historiador, antes de constatar que “o resultado foi uma Europa de Estados-nação mais etnicamente homogéneos do que alguma vez foram”.

A Leste essa Europa manteve-se assim, a Ocidente o rápido desenvolvimento económico das décadas que se seguiram à guerra atraiu aos países mais desenvolvidos sucessivas vagas de imigrantes que inicialmente se integraram bem quer por razões culturais (os que vinham de países do Sul partilhavam a mesma cultura judaico-cristã), quer por serem facilmente absorvidos por um pujante mercado de trabalho. Tudo isso começou a mudar quando mudaram os países de origem da imigração, os muçulmanos começaram a chegar em muito maior número e as tensões não tardaram a aparecer.

O insuspeito Rentes de Carvalho, ele próprio um imigrante que se mudou de Trás-os-Montes para a Holanda, relata de forma muito sentida e vivida as mudanças a que assistiu no seu país de acolhimento nos últimos 50 anos no livro A Ira de Deus sobre a Europa. É aí que escreve, por exemplo, que “custa-me dizê-lo, mais ainda aceitá-lo, mas, tal como é e actualmente se comporta, a Europa tem toda a aparência de presa fácil de um islão que, convicto da sua supremacia e decidido a vencer, não olha a meios nem sacrifícios para impor a sua ideologia. Doutra parte, o hedonismo, a ausência de ideais, uma mansidão que não se distingue muito da cobardia, aqui e ali um tolo sentimento de superioridade, de ‘valores’ e ‘civilização’, são outros tantos factores da nossa provável derrota.”

Na Holanda este livro sofreu uma espécie de “veto de gaveta” por parte do seu editor depois de Rentes de Carvalho se ter recusado a alterar o que escrevera para o tornar mais palatável para os espíritos bem-pensantes, e só este episódio de quase censura fala por si e pelo silêncio que se quer impor sobre estes temas.

Contudo, se recordarmos o que a História nos ensinou, se lhe acrescentarmos a dimensão explosiva do choque cultural, já temos ingredientes suficientes para perceber os limites de uma política de “livre circulação de pessoas” que corresponda a fronteiras abertas.

Agora devemos acrescentar-lhe a natureza humana, a mesma que nos faz procurar o que nos é mais próximo, refugiar-nos no que é conhecido e desconfiar do que é estranho. Pensar que é possível mudar o homem para fazer dele um ser naturalmente cosmopolita – mesmo apreciando eu o cosmopolitismo e sabendo que ele é uma realidade em algumas cidades mais ricas –, é regressar à trágica e perigosa ilusão do “homem novo sovieticus” com a diferença de que a ditadura do politicamente correcto não tem a mesma eficácia (felizmente) da ditadura estalinista – e que mesmo esta fracassou rotundamente. Nenhum programa Erasmus é antídoto suficiente para esta ordem natural das coisas.

Mas regressemos a Itália para perceber melhor como as coisas ainda se podem complicar mais. Regressemos a esse país onde a economia está praticamente estagnada há duas décadas, onde os níveis de desemprego, sobretudo entre os mais novos, são elevadíssimos, e constatemos que, nos últimos anos, uma flotilha de barcos de ONG’s e da União Europeia andaram a recolher no Mediterrâneo centenas de milhar de migrantes que depois despejavam no sul de Itália, apreciasse esta ou não esse comportamento (e não contesto, antes defendo, a urgência humanitária). Acrescentemos a total ineficácia das autoridades europeias para separar os verdadeiros refugiados dos migrantes económicos, que são a esmagadora maioria, o falhanço nas políticas de apoio às autoridades italianas e o caos que foi permitindo que essa massa de gente escapasse por entre os dedos daqueles que os acolhiam e se espalhassem pelo país.

Neste quadro não surpreende que o tema da imigração tenha sido central na campanha vitoriosa da Lega e não estivesse ausente da do M5S. Tal como não espanta que estes dois partidos eurocépticos tenham recolhido, em conjunto, o voto de um em cada dois italianos: na verdade como poderiam os italianos ser entusiásticos apoiantes da União Europeia no quadro destes falhanços? Como podiam os italianos aplaudir uma Europa que lhes impôs que trocassem um primeiro-ministro eleito (Berlusconi) por um não-eleito (Monti), para dar só um exemplo? De resto, se consultarmos o mais recente Eurobarómetro, verificaremos que a Itália é um dos países onde é menor a confiança na União Europeia, conseguindo mesmo ser mais eurocéptica do que o Reino Unido pelo menos num indicador.

Esta situação ilustra a outra vertente do grande mal-estar europeu: o crescentemente descontentamento com um sistema em que o poder real parece estar — e está mesmo — muito longe dos cidadãos, entregue ora a instituições políticas que este não controla e cujo funcionamento não compreende (a Comissão, o Conselho, mesmo o Parlamento), ora a eurocratas sem rosto. É assim que a aparente vontade de marcar distâncias relativamente a Bruxelas e ao seu poder acaba por, paradoxalmente, parecer aproximar Roma das posições do Grupo de Visegrado, que reúne alguns dos países de Leste que têm tido conflitos mais ou menos abertos com os poderes europeus.

O essencial aqui é a percepção de que o poder real não só deixou de estar nos Estados-nação, como passou para entidades alheias cujas deliberações não são verdadeiramente escrutinadas pelos eleitores. Este é um ponto que mereceria mais desenvolvimento, mas por hoje registo apenas uma das suas consequências mais críticas: o divórcio entre os “ilustrados” que governam e os comuns mortais que, mesmo votando regularmente, sentem que perderam o poder para alterar as políticas públicas.

Este divórcio, e a consequente revolta “dos de baixo” contra o establishment, já foi uma das alavancas da vitória de Trump, mas ele também é reflexo de uma outra clivagem que, sendo já muito evidente nos Estados Unidos, também começa a chegar à Europa. Refiro-me à clivagem identificada pelo sociólogo Charles Murray entre o que designa por “New Upper Class” e por “New Lower Class”, categorias que não correspondem apenas a classes de rendimento, mas a grupos separados por profundas clivagens culturais e de modo de vida, grupos que dificilmente se misturam e cujas dinâmicas internas levam à sua auto-perpetuação.

De alguma forma esses grupos correspondem aos nossos cosmopolitas, que vivem entre cidades e lounges de aeroportos, e os nativistas, que se sentem prisioneiros das terras que conhecem e dos grupos em que se integram. Para os primeiros a imigração não é apenas a tradução de um direito à livre circulação de pessoas, é também o bálsamo que ajudará a ultrapassar a crise envelhecimento das nossas sociedades. Para os segundos a imigração é o vizinho do lado, o que pode disputar o emprego, a vez no centro de saúde ou a prioridade na assistência social. E o que, justa ou injustamente, lhe cria um sentimento de insegurança.

As soluções dos movimentos que cavalgaram estas ondas, sejam eles os vencedores das eleições italianas ou o principal partido da oposição na Alemanha, podem não ser as melhores, podem mesmo ser as piores, o que sucede com frequência. Mas isso não impede que os problemas existam, o que impõe que passem a ser encarados de forma aberta e frontal pelas elites políticas e mediáticas.

O preconceito já não está do lado dos que desconfiam da imigração e temem as suas consequências – o preconceito está com os que gritam “xenofobia” e se recusam a reconhecer que há mesmo um problema. Os que também se recusam a admitir que não está nas suas mãos (e ainda bem) educar o povo para fazer dele um exemplo do seu mítico cosmopolitismo.

E depois, não podemos esquecê-lo, estamos mesmo perante culturas diferentes que, se podiam enriquecer-nos, hoje por hoje mais depressa nos ameaçam. Daí que me apeteça regressar a Rentes de Carvalho e algo que devia ser elementar, mas não é: “Recuso odiar o meu semelhante, discriminá-lo, suspeitá-lo, ameaçá-lo. Importa-me pouco em que divindade acredita, e nada me interessam os seus hábitos e rituais. Mas dele espero reciprocidade no respeito que lhe tenho e na dignidade que lhe reconheço”.

Será preciso recordar que a reciprocidade é a base de uma saudável integração e a recusa de integração o maior desafio a essa reciprocidade e a toda e qualquer generosidade? Será preciso recordar que é com essa realidade de não-reciprocidade que estamos confrontados?