1. Onde está a direita liberal em Portugal?, interrogava-se neste jornal Luís Aguiar-Conraria (LA-C), concluindo depois que em parte nenhuma. Devi dizer que tendo a concordar com ele. Em Portugal é muito difícil encontrar um liberal – à esquerda por convicção, à direita por tradição. Mas a resposta à pergunta é provavelmente o único ponto em que concordo com Conraria. Em tudo o mais divirjo: nos argumentos, que são redutores; nos exemplos escolhidos, que são muito mais complexos do que a caricatura apresentada; e na amálgama de exemplos, reunidos mais para provar uma tese: a de tudo, na direita iliberal, é determinado pela “Santa Madre Igreja”.

Não vou, hoje por hoje, ocupar-me de todos diferentes temas abordados, até porque penso que alguns deles têm muito mais tons de cinzento do que uma discussão pública (e política) tendencialmente redutora acaba por apresentar. De resto o texto não escapa a uma dicotomia preto/branco que, podendo servir a tese do autor, não engrandece os debates necessários. Mas há um tema que não posso deixar passar em claro, pois ele ilustra bem como, sob o que parece ser atitude liberal, se acaba a defender o mais estreito estatismo, usando raciocínios iliberais. Estou a referir-me ao problema da relação entre as escolas do Estado e as escolas privadas, o que implica reflectir sobre o que entendemos por liberdade de educação e, também, por ensino público.

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2. A discussão que está na praça pública é sobre os chamados “contratos de associação” e é, a meu ver, a discussão errada, mas mesmo assim inevitável. Acho que é a discussão errada porque esses contratos não nasceram duma política pública favorável à liberdade de escolha das famílias, antes de uma necessidade do Estado, que tinha carências na sua rede e, por isso, celebrou contratos com escolas privadas para estas receberem alunos nas mesmas condições em que estes frequentam as escolas públicas, isto é, sem terem de pagar qualquer mensalidade. Ou seja, esses contratos não procuraram responder a anseios das famílias, antes foram determinados por opções da burocracia do Ministério, o que naturalmente deu origem a casos conhecidos de abuso (mesmo assim marginais se considerarmos o conjunto do sistema). Sendo que, ao contrário do que sugere LA-C, boa parte deste sistema é formado por escolas não confessionais, que nada têm a ver com instituições da Igreja.

Mesmo tendo nascido torto e por más razões, o sistema dos contratos de associação provou genericamente bem, quer ao garantir a supletividade da rede pública quando esta era insuficiente, quer ao proporcionar ensino de maior qualidade, quer ainda ao ter custos mais reduzidos por aluno (eu sei que há quem dispute esta última asserção, mas adiante darei um argumento que a reforça).

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Numa altura em que a demografia começa a tirar alunos das escolas é compreensível, sobretudo em tempos de recursos escassos, que quem gasta o dinheiro dos nossos impostos se preocupe com evitar duplicações e trate de manter o sistema optimizado. Tal devia ser feito, indica o mais elementar bom senso, fazendo isso mesmo, optimizando, isto é, optando por não abrir turmas nas escolas com piores resultados, nas escolas onde o custo por aluno é mais elevado e, last but not the least, optando por seguir as preferências das famílias.

Não é isso que se está a passar. A opção do actual Ministério é ideológica e visa acabar com a diversidade que, mesmo distorcida, ainda existe no sistema de ensino. Procura que todo o serviço público de Educação seja ministrado em escolas do Estado, com professores contratados centralmente e regimes de avaliação reduzidos à mais abjecta caricatura. Se for necessário gastar mais dinheiro dos contribuintes para abrir turmas em escolas do Estado ao mesmo tempo que estas são fechadas em escolas com contratos de associação, é isso que o Ministério fará, como já fez no passado.

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3. LA-C argumenta que é assim que deve ser porque, e cito, “como a escolaridade é obrigatória e o nosso Estado é laico, é obrigação do Estado garantir que existe uma escola laica”. Um Estado laico, acrescenta “não pode obrigar uma família a inscrever as suas crianças em escolas de inspiração católica”. Daí que, conclui, “a implicação lógica é simples: onde há escola pública, não se deve financiar escolas privadas.”

Há um enorme salto lógico, iliberal, nesta última conclusão. Primeiro, nem todas as escolas privadas são “de inspiração católica”. Depois, o Estado não “financia escolas privadas”, o Estado paga a escolas privadas um serviço que estas lhe prestam, ensinando alunos que não estão a consumir dinheiros públicos numa escola do Estado.

Mas o maior salto lógico não é esse: é a dicotomia entre escola pública e escola privada, como se uma tivesse de ter o exclusivo do ensino público e a outra se destinasse apenas a prosseguir fins doutrinários ou comerciais. Ora não é assim, ou não tem de ser assim.

Há um princípio em que, julgo, LA-C e eu estamos de acordo: cabe ao Estado assegurar que existe um sistema de ensino público gratuito para todos em toda a duração da escolaridade obrigatória. O ponto em que divergimos é o de saber se o serviço público de ensino deve tender a ser um sistema fechado, monopolizado por escolas do Estado, comandado a partir da 5 de Outubro e onde os professores são tratados como números arrumados em “listas ordenadas” que determinam as escolas em que são colocados, ou se nesse serviço público podem coexistir e concorrer diferentes tipos de escolas.

Temos em Portugal muitos serviços públicos em que o Estado já percebeu que prossegue de forma mais eficiente os seus objectivos se o sistema for aberto. Um desses serviços públicos é o Serviço Nacional de Saúde, como LA-C bem sabe. O hospital da sua cidade, Braga, que tem um excelente serviço, é um hospital privado integrado na rede pública onde é tratado de forma exactamente igual ao que lhe aconteceria se fosse a um hospital do Estado. A rede de farmácias, que serve qualquer doente do SNS, é predominantemente privada, assim como a de centenas de laboratórios que realizam auxiliares de diagnóstico.

A rede pública de educação também integra, no pré-escolar, uma maioria de estabelecimentos privados, sobretudo de instituições particulares de solidariedade social.

Podia continuar a dar exemplos, mas o ponto central é que uma visão liberal do serviço público de Educação vê o Estado como garantia de que todos têm acesso gratuito a 12 anos de escolaridade, mas não impõe que isso seja feito exclusivamente (ou mesmo prioritariamente) em escolas estatais. Já a visão estatista, iliberal e jacobina do serviço público de Educação entende que o Estado deve ser, à soviética, o proprietário de todas as escolas e o patrão de todos os professores. Como em tempos expliquei, ainda no tempo de Nuno Crato, isso faz de Mário Nogueira o verdadeiro ministro da Educação.

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4. Falta ainda referir o ponto central, aquele que é quase sempre esquecido: o papel e a vontade das famílias. Da liberdade, garantida no artigo 43º de Constituição, “de aprender e ensinar”, sendo que “o Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

Num sistema aberto, liberal, o Estado garantiria que qualquer família, rica ou pobre, poderia escolher a escola e o tipo de ensino que entendesse melhor para os seus filhos. No nosso sistema estatista e jacobino, “socialista”, essa é uma liberdade que só os que podem pagar escolas privadas têm. É estranho que seja a esquerda a defender esta desigualdade, mas é exactamente isso que sucede.

Num sistema aberto, liberal, existiriam escolas de diferente tipo, públicas, privadas, cooperativas, de responsabilidade municipal ou responsabilidade central, que competiriam entre si procurando serem melhores que as escolas do lado, ou promovendo projectos educativos diferenciados, e os alunos poderiam escolher a sua escola em vez de para lá serem dirigidos centralmente por critérios geográficos. No nosso sistema todas as formas de competição entre as escolas são contrariadas, estas não têm sequer autonomia para formarem as suas equipas de professores, o controle de qualidade é burocrático e opaco, muito distante das famílias e muito protector dos interesses dos professores e dos seus sindicatos.

Portugal não muda de um sistema fechado, centralizado e, como já lhe chamei, de comando e controlo estalinista, para um sistema aberto e liberal de um dia para o outro, e sei muito bem que os “contratos de associação” não são um modelo alternativo, apenas um arranhão no monolitismo do nosso sistema. Mas acabar com eles de forma administrativa, deixando o sistema ainda mais fechado, mais estatizado e melhor controlado por Mário Nogueira, é mais um passo, ideológico e corporativo, na direcção errada.

Por Luís Aguiar-Conraria se estar a colocar, neste debate, do lado da escola estatista e comandada centralmente é que, mais uma vez, sinto que em Portugal é mesmo muito difícil encontrar um liberal.

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PS. O ministro-sombra de Educação, Mário Nogueira, tem tido a virtude de dar a cara pelo ataque aos contratos de associação. De dar a cara e, também, de dar um tiro no pé. De facto, para contrariar a ideia de que o fim de muitos destes contratos terá como consequência um gigantesco despedimento colectivo de professores, o eterno líder da FENPROF veio dizer que “se os docentes dos colégios cumprirem o horário que se faz no público, não haverá necessidade de despedir”. É uma afirmação duplamente extraordinária. Primeiro, sugere que as escolas podem manter os professores mesmo tendo menos alunos e menos receitas, basta dar-lhes horários mais reduzidos. O facto de deixarem de ter dinheiro para lhes pagar não parece incomodar os sindicalistas. Depois é uma afirmação que comprova que, nas escolas com contratos de associação, os professores cumprem horários mais longos e têm mais alunos do que nas escolas do Estado, algo que sucedeu quando estes contratos começaram a ser cortados. Ou seja, Mário Nogueira admite indirectamente que aquilo que o Estado paga por turma nesses contratos é menos do que gasta nas suas turmas, pois nestas tem de ocupar mais professores, logo pagar mais salários e salários mais elevados. Conclusão: trocar turmas que saem mais baratas ao erário público por outras que vão custar mais caro só mesmo porque quem manda na 5 de Outubro é um sindicalista de bigode.