Em resposta a um sistema de matrículas que organiza os alunos por residência, os pais recorrem a todo o tipo de artifícios para contornar os critérios e conseguir, independentemente da sua morada, escolher uma escola pública para os seus filhos. Havia alguém que, tendo vivido em Portugal, desconhecesse esta prática? Parece impossível. O fenómeno existe há tantos anos que o mais provável é ninguém se lembrar de como o sistema de matrículas funcionava antes. No entanto, é esta situação de “moradas falsas” e outros truques que estão a fazer as manchetes da Educação nas últimas semanas. Ora, agora que rebentou a polémica e que tanta gente aparece indignada, convém começar por uma pergunta: se a situação era conhecida de todos e prática comum há tantos e tantos anos, por que razão ninguém a tentou resolver até hoje? Só há uma resposta possível: porque há demasiada gente que não tem qualquer interesse em ver a situação resolvida.

Desde há anos, este é um dos elefantes que habita na sala da Educação. Sim, resiste uma óbvia injustiça num sistema que faz depender da morada o acesso à escola e, além disso, permite que centenas contornem essa imposição. Mas a situação, tal como está, interessa a (quase) todos. Muitos pais sabiam, mas trocavam dicas entre si, para maximizar os seus benefícios e conseguir as melhores escolas. Muitas escolas sabiam mas, sempre no cumprimento da lei, viram nestes esquemas uma forma indirecta de ficar com os melhores alunos. O ministério da educação sabia mas, porque esta forma simples de colocação de alunos lhe convém, sempre se fingiu desentendido. Afinal, esta forma de contornar as regras só não satisfaz quem, geralmente, está afastado do debate público: as famílias socialmente desfavorecidas que, mesmo se contra a sua vontade, são forçadas a frequentar as escolas públicas da sua área de residência, porque lhes faltam engenho, conhecimentos e contactos para, também elas, contornarem as regras.

A polémica que está a marcar este Verão nada tem a ver com esta população desfavorecida – e que, mais do que todos os outros, é prejudicada pelos critérios definidos pelo sistema de acesso. Porque, em vez de questionar a discriminação social imposta pelas regras, essa polémica nasce sob o equívoco de que a situação se corrige com fiscalizações sucessivas da Inspecção-Geral da Educação (IGEC). Ou seja, surge pela perspectiva dos moradores dos bairros das escolas que têm muita procura e que, em virtude dos truques de outras famílias, não lá conseguem matricular os seus filhos – e, portanto, o que pretendem é que os seus interesses sejam preservados.

A posição é legítima. Mas, de uma perspectiva de políticas públicas, está errada. Mesmo que a IGEC pudesse agir, isso não corrigiria o problema real, bem mais complexo, de um sistema de matrículas que é, na sua raiz, gerador de desigualdades no acesso à escola. Como muito bem apontou Maria de Lurdes Rodrigues, no DN: “A associação entre residência e acesso à escola oferece-se como um princípio simples de organização do serviço de educação. Porém, quando a desigualdade social e económica se traduz em segregação residencial este princípio transforma-se numa armadilha. As escolas ficam encerradas nos respetivos territórios, tornando praticamente impossível a concretização da igualdade de oportunidades. A associação rígida entre residência e acesso à escola tem efeitos perversos, podendo contribuir para o aumento tanto das desigualdades escolares com das desigualdades sociais”. É este o elefante que ocupa a sala da Educação há anos e anos – o sistema português de acesso às escolas está apoiado num critério geográfico que é, de acordo com uma extensa literatura académica, reprodutor de segregação residencial e promotor de desigualdades sociais.

É este o desafio em causa que importa resolver. Um desafio de políticas públicas de educação que Portugal não inventou e para o qual muitos países encontraram respostas à sua medida, dentro da rede pública. Em Espanha e em Itália, os pais escolhem a escola dos filhos e as autoridades da Educação só intervêm se houver excesso de procura. Na Holanda e na Irlanda, os pais escolhem livremente a escola dos seus filhos, sem interferência das autoridades públicas. No leste da Europa, os alunos são automaticamente matriculados numa escola, mas aos pais é concedida a possibilidade de requerer (e sustentar) um pedido de mudança de escola. Na Suécia, por exemplo, os casos de excesso de procura resolvem-se por ordem de chegada das matrículas. Nos EUA, num outro exemplo, em muitas escolas com contrato (charter schools), há vagas sorteadas, de modo a garantir que, entre os alunos de famílias desfavorecidas, todos têm a mesma probabilidade de ser escolhidos.

Não faltam exemplos internacionais de possíveis soluções e, por certo, haverá uma opção que se adapte e assente melhor nas características do sistema português. O ponto aqui é que, com ou sem polémicas de Verão, o obstáculo de raiz não é a falta de alternativas; é mesmo a falta de vontade. E isso, como exibiu esta polémica, não vai mudar tão depressa.

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