Por enquanto ainda estamos nos bastidores do rebuliço, mas a peça promete. E mesmo que todos os anos por esta altura se reponha (felizmente) esta mesmíssima peça, a azáfama redobra. Sim, sabemos de cor o guião, amamos os protagonistas, estamos habituados ao palco, o “back stage” não tem segredos, mas a verdade é que a encenação nos ocupa como um emprego. A tempo inteiro.

Emprego terno, é certo, mas aparatoso! Como se todos os anos em Agosto (o que misteriosamente não sucede no Natal ou na Páscoa) o céu nos desabasse na cabeça. E cada Agosto com sua novidade, que rotinas ou previsibilidades não se praticam neste nosso oeste onde estamos em vigiliatura e que, à hora a que escrevo, se parece até mais com a Escócia (céu fechado, chuvinha cinzenta, paisagem molhada). Não é que não estejamos habituados a esta espécie de Escócia privativa –o Oeste é climatericamente caprichoso, sempre o foi. Mas este ano o ancestral capricho calha-nos mal, pois a novidade da estação é… “um acampamento avó, somos dez, dormimos e comemos na cabana, não é preciso nada”. Sucede que com um plumbeo céu escocês em lugar do intenso sol português, a empreitada ainda vira um desastre.

Um acampamento, portanto. Com a sua disciplina, os seus desafios, as suas descobertas. Os avós aplaudiram a ideia e ainda mais que ela tenha ocorrido à mãe do neto mais velho (nove anos) talvez por ela ter percebido que ao Luis Maria não lhe interessava apenas dar saltos numa piscina, vencer o mar da Foz do Arelho, jogar futebol com os primos ou ler livros em português, uma obrigação estival. Para completar a educação britânica que actualmente recebe (depois de em criança ter sido industriado nas primeiras letras por afáveis professoras coreanas, em Seul, onde, off all places, viviam os seus pais e nasceu um dos seus irmãos). Por este andar Shakespeare não terá segredos para ele enquanto Camões permanecerá certamente mais nebuloso, mas não falo disto por acaso ou para fazer género: um dia, em Londres, observando um horário com as ocupações das várias turmas da escola pública inglesa do Luís, retive uma indicação: nessa semana, as “children on Shakespeare” deveriam encontrar-se na turma tal, às tantas horas, do dia tal, para rumarem a um teatro onde se representava um drama shakespeariano.

Enfim, voltando ao acampamento, o Vasco, tio do Luis Maria, foi de imediato mobilizado como “director de operações”, dando-se a feliz coincidência de poder voar de Viena onde vive e trabalha, por dispor em Agosto de uns modestos dias de férias — embora viaje sem a namorada austríaca, essa, a braços com a criação de empresa própria, ciclópica tarefa que ultrapassa a fronteira (e o empenho…) de qualquer acampamento. O sr. João, que é jardineiro, já foi requisitado para alisar a terra de roda da cabana que há-de albergar os campistas de palmo e meio, mas cujo engenhosíssimo desenho constitui uma forte atração: a cabana foi erguida sobre estacas de modo a tornar mais “desportivo” o seu acesso, quando há vinte anos o avô do Luis a construiu. E quanto a nós, avós, não fomos requisitados para a empreitada porque já o estamos, por definição e natureza. É por isso que corremos os supermercados em demanda de resmas de pratos e copos de papel, pães de forma que “durem”,  sumos, enlatados, uma tonelada de bolachas, “n” bolas de queijo, suando por entre prateleiras e desesperando em filas de gente na caixa de pagamentos, sempre absurdamente escassas para a procura e para a época, mas, em Agosto, já se sabe, praticam-se mistérios a alta velocidade: esgotam produtos, são sempre poucas as caixas de pagamento abertas, há estados de alma à solta, emoções à flor da pele. Como se Agosto fosse uma novidade ou uma surpresa e não um tormento com pré-aviso.

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Enquanto o tempo já está em contagem decrescente para a chegada do Vasco ao Oeste, a aterragem dos amigos do Luis que vêm de diversas zonas onde veraneiam e o início “oficial” do acampamento, há porém um equívoco que esse sim, cresce a olhos vistos: os primos mais novos do Luís e sobretudo as suas primas, Aurora, Camila e Leonor — todas aqui em férias com os seus pais nesta nossa morada familiar — não duvidam que terão livre acesso à cabana. Não terão: “Menina não entra”. (Como nos saudosíssimos tempos da Luluzinha e do Bolinha, tão saudosos que prevendo eu a falta que vida fora me fariam tais aventuras quando tivesse filhos e netos, os mandei encadernar, vai para muitas décadas. )

As primas não integram o lote de seleccionados (ficam no “banco”) e uma nova e improvável dupla que “nasceu” este verão, também não: é constituída pelo Tim-tim e pelo Jaiminho (ambos de três anos) que mal se conheciam, (um vive em Espanha , outro em Londres) mas que numa semana se tornaram siameses: dos mergulhos do muro do tanque aos pontapés na bola, passando por incompreensíveis e intermináveis conciliábulos, tudo é agora feito em comum.

Isto assim contado parece plácido e deslizante, mas a realidade, hélas, não será tão amável e basta passar as portas de qualquer uma das casas e atravessar um quarto de cama : nada se distingue de nada, sapatos enrolados em toalhas, partes de pijamas, havaianas desemparceiradas, fatos de banhos misturados com t-shirts, livros espalhados, bocados de brinquedos, restos de pão, e não se diga que nós não pomos cobro a esta alteração da ordem. Pomos. O que nunca temos é êxito. Confusamente disfarçamos ou desabafamos entre nós, os vários avós neste nosso Oeste, mas depois é isto, uma rendição amorosa. Mas se a vida fosse só “isto”, afinal esta doçura, era absolutamente maravilhosa: haverá maior privilégio do que poder tão inocentemente “estar de serviço” aos netos e atender, da mais radiosa maneira, ao seu pequeno grande mundo?

E já agora… haverá recompensa melhor do que ter ouvido o Luis dizer que queria ir connosco ao concerto do Festival Internacional de Piano de Óbidos, onde Badura Skoda tocava Beethoven e Schubert? O seu gosto em nos acompanhar valeu bem um quarto desarrumado…E lá foi ele, sob o olhar sempre maravilhado com que os seus dois irmãos mais novos lhe seguem qualquer pisada. Mesmo com dúvidas: “avó, o que é um concerto? O Luís diz que vai a um, esta noite…”