Espinosa aconselha-nos, na última parte da Ética (escólio da proposição X, para os interessados), a contemplar o menos possível os vícios dos homens. A justeza do propósito parece impecável, e eu apenas acrescentaria: a começar pelos nossos próprios. Não sei se é lícito ou não, mas a sugestão parece-me alargável às coisas políticas. Por uma razão desse tipo, desde há muitos anos que pouco leio, por exemplo, sobre campos de concentração nazis ou comunistas. Li na altura certa – isto é, muito novo – alguma da literatura sobre a matéria e, sem de modo algum ter tido o sentimento de compreender perfeitamente o horror (o que seria tontice, até porque a tarefa é infinita), algo me levou a pensar, e ainda penso, que fiquei a saber no capítulo o suficiente para me orientar politicamente. E, sobretudo, que nesta curta vida convém, se possível, guardar mais tempo para pensar o melhor do que o pior.

Há, no entanto, alturas em que o pior salta aos olhos com tanta força que é impossível não fixar nele o olhar. Aconteceu-me no outro dia ao ver dois documentários realizados por Joshua Oppenheimer em 2012 e 2014: The Act of Killing e The Look of Silence. Os documentários lidam com os assassinatos em massa de comunistas, ou de tudo o que apetecesse designar assim, praticados por gangsters a soldo do exército na Indonésia em 1965 e 1966. O número de mortos oscila, como sempre acontece nestas coisas, muito. Vai de 500.000 pessoas a três milhões. Mas isso não é o essencial do que os documentários, sobretudo o primeiro, fazem pensar. Como não é o essencial o contexto – a Guerra Fria e a transição do regime de Sukarno para o de Suharto – em que tiveram lugar. Obviamente importante, mas aquém da revelação essencial na qual somos introduzidos. O essencial está naquilo ao qual é difícil atribuir um nome e que, muito genericamente, se pode talvez chamar a felicidade na recordação do acto de matar.

Joshua Oppenheimer foi procurar alguns dos perpetradores dos massacres e entrevistou-os, pedindo-lhes para relatarem os detalhes mais ínfimos das suas operações. E, meu Deus, como eles generosamente assentiram ao pedido! Nessa generosidade começa logo a terrível estranheza do documentário. Relembrar aqueles momentos foi para aquela gente, na maioria com o aspecto normalíssimo que uma certa velhice concede, um prazer. E, quando não um prazer, algo que podia ser levado a cabo sem qualquer incómodo visível ou conjecturável. O sentimento de impunidade de que gozavam presentemente (a protecção governamental é explícita) ajudava certamente à boa consciência. Mas era mais do que isso, é claro: a naturalidade do acto de matar está presente a todo o instante. E o que é concebido como natural pode viver-se com alegria. Parece que Estaline organizava, em certos jantares no Kremlin, paródias em torno das confissões finais dos acusados nos processos de Moscovo, que muito o faziam rir, bem como aos restantes comensais. Imagino que o processo mental desse riso fosse análogo.

Não vou entrar no relato das torturas e dos assassinatos. Apenas noto a tecnicidade com que ambas são descritas, bem como a insistência na utilidade de certos métodos, nomeadamente num fio de arame que, puxado pelas suas extremidades, degola com formidável eficácia as vítimas. E no orgulho na crueldade própria, favoravelmente comparada com a dos nazis. Eles, e não os comunistas, gabam-se, eram verdadeiramente cruéis. Mas atenção: crueldade não significa sadismo. Numa delirante discussão semântica, a distinção é feita por um dos participantes. Que, já agora, organizavam reuniões familiares, com mulheres e criancinhas, onde em conjunto mimavam a captura, a tortura e o assassinato dos presos, como que para transmitirem oralmente os seus passados feitos.

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Ignoro se foi isso que levou Joshua Oppenheimer a uma ideia de génio, que alça o documentário a uma dimensão que nunca antes me tinha sido conhecida ou sequer vagamente imaginável: convidar aquela gente a fazer um filme sobre as suas passadas actividades. Uma ideia que, mais uma vez, recebe um acordo entusiasta. E o documentário dá-nos a ver uma parte dos ensaios e da realização do filme.

Aqui mergulha-se na mais extrema e radical irrealidade. Como se costuma dizer, usando a palavra com a habitual falta de rigor: é surrealista. Encenam-se entusiasticamente violações em massa, torturas e assassinatos. Uma cena é particularmente memorável. Na filmagem de uma tortura que acaba com a morte do torturado pela tal técnica da degolação com o fio de arame que mencionei, o “actor”, que havia utilizado a eficaz técnica vezes sem conta, confessa ao realizador uma sua curiosa dúvida: será que as pessoas que ele assim tinha morto sentiram um terror idêntico ao que ele sentira no momento da filmagem? Ao que Joshua Oppenheimer, que não faz praticamente ouvir a sua voz ao longo do documentário, responde, para aparente surpresa do outro, que tinha sido bem pior: que os mortos sabiam que iam morrer e que ele sabia que era apenas um filme. Olhar de surpresa no rosto do actual “actor”. Que não abala, apesar de algumas indicações em contrário, a sua boa consciência. Na cena final do “filme”, de um kitsch dificilmente imaginável (tudo no fime é dificilmente imaginável, mas aquilo ultrapassa tudo), contra o pano de fundo de umas meninas que dançam em frente a uma cascata, e ao som da canção “Born Free”, as vítimas passadas agradecem com um beijo aos seus assassinos o terem-nas matado e lhes terem permitido ir para o Céu.

Tudo isto apenas pode dar uma pálida imagem do contacto directo com o horror que The Act of Killing nos dá. Deixei totalmente de lado The Look of Silence, onde o irmão mais novo de alguém torturado e morto de forma particularmente cruel em 1965 parte em busca dos perpetradores do crime e os interroga, enquanto (é oftalmologista) lhes faz testes de visão para novos óculos. Se bem que não de forma tão decisiva como o primeiro documentário, também este nos mergulha fundo naquele mundo terrível.

Agora, podemo-nos perguntar: será que tudo isto seria possível fora de uma cultura onde o acto de matar seja agraciado com uma naturalidade transcendente? Ignoro praticamente tudo sobre a cultura indonésia (gosto da comida – difícil, de resto, de encontrar em Portugal), mas lembro-me de uma coisa que um antigo amigo antropólogo que se deslocava praticamente todos os anos a Timor há muito me disse: eu ignorava por inteiro (referia-se a Timor) a inacreditável violência e crueldade daquela sociedade. Seja como for, coisas dessas aconteceram em grande escala, como se sabe, na Europa, e mais vale ter em mente aquela frase (creio) de David Rousset, citada por Arendt em As origens do totalitarismo, depois da sua passagem por um campo de concentração alemão e antes da sua denúncia dos campos de concentração russos, fulminada por Sartre e pela esquerda em geral: “As pessoas normais não sabem que tudo é possível”.

“As pessoas normais não sabem que tudo é possível.” Saber que tudo – inclusive o pior dos piores – é possível é algo que devemos ter sempre presente, mesmo quando pensamos o melhor: o verdadeiro, o belo e o bom, como dantes se dizia. Até porque sem essa consciência o melhor não pode ser verdadeiramente pensado. É a moral da história. E os documentários de Joshua Oppenheimer lembram-nos isso na perfeição.