A cantora de ópera de voz horrível que tinha dinheiro para alugar salas e acompanhadores, e proporcionar os seus horrores a audiências onde metade fazia troça dela, é normalmente considerada um sinal de que as formas mais elevadas de amor à arte são inseparáveis de requisitos técnicos mínimos. Não será possível presumir culto da arte, diz-se, em quem não saiba cantar afinado, escrever bem, e pintar com destreza.

Embora os artistas que mais admiramos sejam todos capazes de o fazer, ‘cantar afinado’, ‘escrever bem’ e ‘pintar com destreza’ designaram todavia coisas muito diferentes desde o Neolítico. Aqueles cujas proezas técnicas admiramos hoje não seriam reconhecidos há duzentos anos; e muitos dos que então o foram são hoje objecto de enfado. O assunto é bem conhecido, mas não há realmente grande coisa a dizer sobre ele. Dizer que tudo é relativo suja tudo e não explica nada.

Acontece que o amor pela arte na cantora de voz horrível se exprime apesar da voz horrível da cantora. O que diverte a maioria e intriga uns poucos não é que ela não possa gostar de música, mas que seja evidente que goste tanto. Mas não será, pode objectar-se, que ela gosta mal de música? E não será que o modo de ela gostar de música nos estraga a vida, como uma pessoa que assusta os gatos, ou que risca os livros, ou que apanha todas as flores dos canteiros públicos? Não sabemos bem o que quer dizer ‘gostar mal’; e ninguém deixou de gostar de música por causa da cantora de voz horrível; alguns terão mesmo passado a gostar por causa dela.

O que é comovente na cantora de voz horrível, mais orçamento menos orçamento, é o que é comovente nos miúdos que se tornaram insuportáveis à vizinhança por causa da barulheira que fazem a desoras, sobretudo com a bateria. Como no caso da cantora, ninguém tem dúvidas de que por variadas razões, normalmente técnicas, não conseguem fazer o que pretendem. Mas como no caso da cantora importa-lhes muito pouco que não consigam. O seu amor pela arte exprime-se em tentar fazer aquilo que não conseguem.

É por essa razão que o amor à arte não se vê, ou não se vê na maior parte dos casos, em salas de concertos, galerias de exposições e em livros publicados. Vê-se pelo contrário mais frequentemente nos horrores em que tantos de nós insistem: em poemas que como disse um poeta nem sequer servem para atacadores; nos desenhos que fazemos sempre que somos confrontados com o espectáculo de fenómenos naturais a que queremos fazer justiça; e quando cantamos no banho, aproveitando aquilo que imaginamos ser as condições acústicas que os azulejos da casa de banho nos proporcionam, embora prejudicados pelo barulho da água a correr.

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