Num passado que parece hoje muito longínquo (1999) o Bloco de Esquerda elegeu os seus primeiros deputados à Assembleia da República. Eram dois, mas rodaram quatro no Parlamento: Francisco Louçã, Fernando Rosas, Helena Neves e Luís Fazenda. Quando chegaram a São Bento colocou-se um problema: onde deviam eles sentar-se? Os novos deputados faziam questão de se sentar na extrema-esquerda do hemiciclo, à esquerda dos comunistas, os comunistas ainda resistiram à ideia, mas eles lá acabaram por ir para o lugar aonde ainda hoje estão, encostados ao local de trabalho dos jornalistas.

Foi há 18 anos e, olhando para o que é hoje o Bloco e para a forma como entrou na geringonça e tem colaborado com o governo de António Costa, percebemos como o partido se “aburguesou”. Ou, para sermos mais exactos, verificamos como o Bloco, sempre muito marcado pelo registo “esquerda caviar”, se foi tornando cada vez mais caviar e cada vez menos esquerda – ou pelo menos dessa esquerda tal como a entendiam os que, nesses tempos finais do século passado, se bateram para se sentarem naquele canto do Parlamento.

Os sinais estão por aí, e por todo o lado. Compare-se, por exemplo, a forma delicodoce como Ricardo Robles, em nome do Bloco, reagiu à mensagem de Natal de António Costa – considerando que este focou o “mais importante no país” – e o registo bem mais duro do PCP – para quem “só sobrarão promessas” se Governo continuar “amarrado” ao défice. Repare-se também como o mesmo Ricardo Robles, na sua qualidade de vereador na Câmara de Lisboa, viabilizou com a sua abstenção a manutenção da taxa de protecção civil em Lisboa, para depois vir hipocritamente dizer que sempre a considerou ilegal. Ou escutemos o quase enlevo de Mariana Mortágua ao discutir numa entrevista ao Expresso a hipótese de ser ministra das Finanças ou de o Bloco chegar ao poder em 2019.

É fácil perceber porque é que isso está a acontecer, mas não podemos ficar pela muito curta explicação de que esta evolução resulta apenas do tal “aburguesamento”, até porque falamos de um partido cujos principais dirigentes sempre apreciaram le charme discret de la bourgeoisie, fossem eles as longas noites no Lux dos seus fundadores, sejam eles as motas potentes da jovem Mariana. Nada contra, naturalmente, mas a verdade é que sempre foi enorme o contraste entre o estilo do Bloco e o ascetismo do líder do PCP, o que também reflecte origens sociais bem distintas e uma base eleitoral que pouco tem em comum, já que o eleitor tipo do Bloco é mais depressa alguém da classe média desafogada do que um pensionista pobre ou um operário fabril.

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A verdade é que, neste seu descarado namoro, o que se vê é que, apesar de todo o seu radicalismo verbal e da facilidade com que eleva o tom de voz, os dirigentes e militantes do Bloco não escapam à milenar regra tão bem descrita por Fedor Dostoievski em “A Casa dos Mortos”, quando discorreu sobre como “o sangue e o poder intoxicam”. Neste caso bastou o aroma do poder para o Bloco já discorrer sobre como tem “capacidade técnica e política para governar”, tratando de reivindicar triunfos nas várias negociações em que se envolveu com o Governo. Aliás é bem notória a diferença de envolvimento e cumplicidade quando comparamos a forma como o Bloco negoceia com o PS com a postura sempre distante e fria dos comunistas. As rodas da geringonça não têm todas o mesmo andar.

Por isso não se surpreendam se assistirem a reviravoltas políticas, a começar pelo abandono progressivo da retórica sobre o “erro” do rigor orçamental ou a “ditadura” do Pacto de Estabilidade. No seu mais recente congresso os bloquistas ainda assobiaram os seus antigos heróis do Syriza, por enquanto vistos como “traidores” por terem cedido às exigências europeias; no seu próximo Congresso não me surpreenderia que já se advogasse um “realismo” mais compaginável com o desejado perfil ministeriável de alguns dirigentes do BE. O Syriza engoliu o que teve de engolir apesar de tudo o que antes prometeu em nome da conservação do poder – o Bloco não é mais puro, nunca foi nem será, e por isso também engolirá o que tiver de engolir.

Por fim, e este é o aspecto mais inquietante, não há forma de não ver que o Bloco até talvez não tenha de se mover muito para poder ter ministros num governo liderado pelo PS – é que entretanto foi o PS que já se moveu imenso na direcção do Bloco. É certo que o executivo de António Costa, depois de umas semanas teatrais de braço de ferro com as instituições europeias por causa dos limites do défice, apresenta-se hoje como um campeão da ortodoxia orçamental, mas não nos devemos deixar enganar: uma coisa foi o choque com a realidade que obrigou o PS a refazer toda a sua primeira proposta de Orçamento para 2016 (é bom recordá-lo aos mais desmemoriados), outra coisa é o lugar onde está o coração dos socialistas, e este está cada vez mais perto do espaço definido pelo Bloco e pelo seu discurso neomarxista.

Escrevi em tempos que um dia destes acordávamos nas mãos do Bloco e sinto que isso é cada vez mais verdade. O Bloco continua a ser o partido menos escrutinado em Portugal, aquele que um dia vota a lei sobre financiamento dos partidos e, no dia seguinte, quando percebe que os ventos mudaram, se distancia dos restantes partidos sem que seja penalizado pela falta de coerência. O Bloco é o partido que nunca tem de explicar as suas propostas nem contabilizar o seu custo. O Bloco é o partido de intelectuais que repete velhos slogans com o único fito de aliviar a consciência desses intelectuais – e dos intelectuais que votam no Bloco – para que estes não tenham de abdicar do seu conforto burguês. O Bloco é por fim o partido que se julga moralmente superior aos demais, sempre se achou, bem na linha, de resto, da tradição dos radicais de esquerda, dos jacobinos aos comunistas (ou não tivesse Álvaro Cunhal escrito A superioridade moral dos comunistas).

Este mal infiltrou-se um pouco por todo o lado, fazendo do politicamente correcto uma arma, usando a comunicação social com habilidade e ocupando (literalmente) departamentos inteiros nas nossas universidades. É um mal que criou mecanismos que asseguram a sua perpetuação e reprodução, o que nem é difícil num país complexado e pouco dado ao verdadeiro debate de ideias.

Este mal é tão insinuante que tem do seu lado boa parte do PS, sendo que as vozes socialistas mais histriónicas, que no passado estavam circunscritas à última fila da bancada, são hoje mainstream e ocupam lugares de liderança, sendo que alguns também alimentam a ambição de virem a tomar conta de um Ministério.

Diria mesmo que já está escrito nas estrelas: salvo surpresas de maior, lá para 2019 António Costa deverá poder libertar-se do PCP e fazer uma geringonça mais fofinha (e com menos arestas) só com o Bloco, altura em que o casamento por certo incluirá entregar ao partido de Catarina Martins algumas pastas ministeriais – tal como em Lisboa Fernando Medina já entregou pelouros a Ricardo Robles.

Estão todos mortinhos para que isso aconteça.