Não é frequente que os portugueses tenham a oportunidade de ouvir, com poucos dias de diferença, dois destacados membros da cúria romana. Mas, neste mês de Outubro, não só tiveram o privilégio de escutar o Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado, como também terão a graça de ouvir o Cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.

O Cardeal Secretário de Estado presidiu, na Cova da Iria, à celebração comemorativa do 99º aniversário da última aparição mariana. Igualmente peregrino de Fátima, o guineense Cardeal Sarah aí dirigirá a reza do terço e celebrará a Eucaristia, proferindo depois, no próximo dia 19, pelas 18h30, no auditório Cardeal Medeiros, da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Lisboa, uma conferência intitulada “A crise de Deus no Ocidente e a missão dos cristãos”. Ambos são muito próximos colaboradores do Papa Francisco, cuja vinda à Cova da Iria, no dia 13 de Maio de 2017, centenário da primeira aparição mariana, já foi confirmada pelo próprio.

No passado dia 12, o Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado – cargo equivalente, no governo central da Santa Sé, ao de primeiro-ministro – teceu, na sede lisboeta da UCP, algumas interessantes considerações sobre a identidade europeia. A diplomacia da Santa Sé não se situa ao nível das políticas governamentais, nem obedece a nenhuma preferência ideológica e, por isso, está especialmente vocacionada para as questões humanitárias. Por este motivo, não poderia ser maior o empenhamento do Papa Francisco e da diplomacia vaticana em relação aos refugiados, pela denúncia das redes de tráfico humano e pela proposta de medidas de acolhimento dos exilados, quaisquer que sejam a sua origem, raça ou religião.

Se o Cardeal Parolin é o braço direito do Papa Francisco para as questões humanitárias e de política internacional, o Cardeal Robert Sarah é, por assim dizer, o ministro da liturgia no governo da Santa Sé, como Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.

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Como actual guardião da liturgia católica, o Cardeal Sarah, em sintonia com o Papa Francisco e sob a sua orientação, propõe-se levar a cabo uma corajosa ‘reforma da reforma litúrgica’, não no sentido de um anacrónico regresso à liturgia pré-conciliar, como defendem os tradicionalistas de Mons. Marcel Lefebvre, mas pela aplicação da autêntica interpretação do Concílio Vaticano II, não poucas vezes executado à revelia da tradição eclesial e dos ensinamentos conciliares.

Mas Robert Sarah não é apenas mais um cardeal da cúria romana, é sobretudo um valeroso confessor da fé. A sua biografia é uma impressionante história de resistência, no contexto de uma Igreja perseguida, como foi a da Guiné-Conacri, ao tempo do regime marxista de Sékou Touré, o ditador que não só confiscou e nacionalizou todas as escolas, obras sociais e imóveis da Igreja como também, no Campo Boiro, mandou torturar e matar inúmeros prisioneiros políticos: quando um golpe de Estado militar pôs termo à ditadura marxista, eram mais de dois mil os prisioneiros políticos aí detidos.

Do heróico testemunho da Igreja católica guineense dá-se conta numa longa entrevista, que o Cardeal Robert Sarah concedeu ao vaticanista Nicolas Diat, e que foi agora traduzida e publicada em português (Deus ou nada, Lucerna). Aí se refere a expulsão do bispo Gérard de Milleville da Guiné-Conacri, por ter assinado um enérgico protesto contra a espoliação da Igreja católica, bem como a detenção, num campo de concentração, do arcebispo Raymond-Marie Tchidimbo que, para poder celebrar secretamente a missa, tinha que o fazer pelas 5 horas da manhã, antes de acordarem os seus companheiros de cela.

Em substituição do detido R.-M. Tchidimbo, o Beato Paulo VI nomeou Robert Sarah arcebispo de Conacri, quando tinha apenas 33 anos de idade, sendo então o mais novo bispo da Igreja católica. Depois, São João Paulo II chamou-o a desempenhar, em Roma, as funções de secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos, quando o jovem arcebispo da capital desse país africano, vizinho da homónima ex-colónia portuguesa, corria sério risco de vida, à conta da sua heróica defesa dos direitos humanos e da liberdade dos guineenses. Mais tarde, Bento XVI elevou-o ao cardinalato, nomeando-o presidente do pontifício Conselho Cor Unum. Por último, o Papa Francisco designou-o perfeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.

Consta que o Beato Bartolomeu dos Mártires, o santo arcebispo de Braga que participou no Concílio de Trento, teria então dito que os eminentíssimos cardeais precisavam de uma eminentíssima reforma. Também agora, a Igreja católica precisa de uma eminentíssima reforma. A principal reforma de que a Igreja do século XXI carece não é administrativa, mas a que é feita pela confissão da fé, de que é exemplo vivo o corajoso magistério e a profunda espiritualidade do Cardeal Robert Sarah.