Por estes dias, em que os taxistas devem andar a dizer aos clientes que no tempo de Salazar não havia Uber, andamos quase diariamente confrontados com duas poderosas encarnações do Bem e do Mal. Do lado do Bem, António Guterres, um santo entre os santos, e ainda por cima português. Do lado do Mal, Donald Trump, um demónio entre os demónios, e ainda por cima americano. Algo me diz que nenhum deles provoca particular excitação aos nossos compatriotas, no que estão muito bem acompanhados por mim. Mas a comunicação social adora-os: no amor e na detestação, respectivamente.

Sobre Guterres, confesso que as minhas ideias são pouquíssimas. Lembrando-me das suas aventuras portuguesas, porque isto da paroquialidade bate forte na memória, só espero que não descubra que o mundo, que ele vai governar lá do alto palanque das Nações Unidas, é afinal um pântano, porque seria uma tristeza para todos nós vê-lo desgostoso. E que em Nova Iorque exista um sótão ou outro (ou, dado o upgrade, uma penthouse, que é mais fixe) para conspirar contra quem for necessário e estiver a jeito. Conspirar? Pode-se conspirar a favor do Bem? A palavra não soa mal, não traz consigo suspeitas de impureza? Digamos antes: inspirar. Inspirar, exprimir bons desejos, emitir doces e espiritualmente tácteis eflúvios que nos afaguem a todos com um terno cuidado de cristã benevolência. Assim está melhor.

Resta Donald Trump. Ideias só uma ou outra, sem particular interesse. De qualquer maneira, o Mal excita sempre mais do que o Bem, uma matéria sobre a qual teólogos e filósofos discorreram longamente, para se lamentarem ou dizerem coisas inteligentes. E se o personagem em si não se oferece como assunto infinito, sobra o perdoável expediente de tomar como objecto os reflexos que ele provoca. Porque aí lidamos com as reacções de gente que julgamos de nós próxima ou longínqua, intelectual ou mesmo só politicamente, e convém conversar.

Começo pelo mais insignificante, isto é, por mim. Não sou, é verdade, um bom exemplo, porque, tirando uma só vez (a reeleição de George W. Bush contra John Kerry – e era por Bush, para que não haja dúvidas), nunca segui passionalmente as eleições americanas. Preferi, é claro, uns a outros, mas sem angústias ou deleites. Até porque sempre pensei (e penso, com razão ou sem ela) que, qualquer que seja o Presidente eleito, as variações políticas serão mínimas e em primeiro lugar resultantes dos acasos do mundo. Mas Trump conhecia-o desde há muito, da televisão, e tinha uma opinião formada: um tipo excepcionalmente desagradável. O pior dos ricos sem o melhor, a arrogância vista como uma virtude em si, o culto do sucesso pelo sucesso, como se a contingência e o azar não existissem e o sucesso fosse uma virtude teologal, e por aí adiante. Resumindo: ter-se-á percebido que não gostava. E suponho que muita gente tem exactamente essa mesma opinião de Trump, acrescentando-lhe, segundo a respectiva filosofia pessoal, outras desafeições: a sua falta de filiação na tradição do Partido Republicano, a sua aparente xenofobia, o seu machismo, o seu proteccionismo, a sua suposta admiração por Putin, e, porque não?, o seu curioso revestimento capilar.

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Tirando o último detalhe, que, por compreensíveis razões pessoais, me abstenho de comentar, concordo à superfície. O que é, então, que me faz irritar-me com o tom geral da cobertura jornalística (não falo dos artigos de opinião) que a comunicação social, no caso a portuguesa, segue em relação a Trump? E não apenas irritar-me, mas discordar do juízo e do tom? Não é a simples reactividade. A reactividade é muito legítima em política, mas seria ridículo, aos cinquenta e seis anos, uma pessoa definir-se exclusivamente por ela.

Passo por cima do facto de ser possível uma cobertura objectiva dos acontecimentos sem imiscuição excessiva de opinião pessoal, ainda por cima de opinião pessoal fingindo que não o é e cheia de arzinho de virtude. A tal cobertura objectiva pode-se ver em muitos lugares por esse mundo fora em jornais e televisões. Passo por cima disto, que é demasiado geral. E vou directamente ao que me parece essencial: a incapacidade, ou insuficiente esforço, para estabelecer uma distinção entre (perdoe-se a linguagem) a expressão e o significado. Não há, é claro, distinção absoluta entre uma coisa e outra, mas há graus e, sobretudo, não há identidade pura e dura. Clint Eastwood, que percebe destas coisas, disse-o a propósito do suposto racismo de Trump: não levem isso a sério.

Isso, esta confusão, vê-se a propósito de tudo. Tomemos as declarações em off de Trump (em 2005, creio, quando estava longe de ser candidato presidencial) sobre o seu modo de estabelecer contacto com o eterno feminino. Não sou adepto do abuso das comparações em política, mas qual a relação da puerilmente grosseira bravata com as violações, muito perdoadas à esquerda, de Dominique Strauss-Kahn? Nenhuma. Se isto é matéria de escândalo, vou ali e já venho. Espero, pelo menos, que José António Saraiva dedique o seu próximo livro a ditos de políticos portugueses no capítulo. Tenho a certeza que o livro seria muito extenso – e terrivelmente aborrecido.

O que vale para o machismo vale, com ligeiras modificações, para tudo o que, no que Trump diz, suscita furores heróicos. É Trump inocente em relação a tais interpretações? Claro que não. Como muita outra gente por esse mundo fora, faz do excesso verbal um cartão-de-visita, e isso não se recomenda nem humana nem politicamente. Inocente dos piores propósitos, eu acredito-o. Inocente da sedução do excesso verbal, obviamente não. Mas faz isso dele o demónio que pintam jornais e televisões? Não. Faz isso dele um monstro face à não menos, embora num género diferente, histriónica Hillary, a do inefável sorriso de superioridade moral? Também não. E o eleitorado americano, de que ninguém se digna falar, sabe-o.

Num filme relativamente tardio e óptimo de John Ford, The Last Hurrah, Spencer Tracy, um velho político sabido e perito em todos os truques que acaba derrotado na tentativa de reeleição para mayor de uma cidade da Nova Inglaterra por um candidato que beneficia grotescamente do poder da televisão (estamos em 1958), explica cristalinamente a coisa: deve-se prometer o que as pessoas desejam e, depois de eleito, dar-lhes o que elas suportam. Donald, ou Hillary, farão exactamente isso. Estou, como de costume, muito tranquilo com as eleições americanas.

E com António Guterres também. Tenho um lado bom.