Na semana em que Lisboa é a capital do ciberespaço, devido à realização da Web Summit, o maior evento do sector à escala mundial. Na semana em que se realizam as eleições mais importantes e mediáticas do mundo, com a escolha do novo presidente do Estados Unidos da América. Um tema transparece como comum aos dois eventos: o papel do ciberespaço na política, na economia e na segurança da nova ordem mundial.

Com efeito, se a grande cimeira sobre as novas tecnologias e o seu aproveitamento económico há escala global, representa a última fronteira para o crescimento económico qualificado, o escândalo com o correio eletrónico oficial encontrado no servidor privado da candidata democrata à Casa Branca, constitui o último avatar da utilização da web e de tudo o que lhe está associado no domínio da política, da estratégia e da segurança internacional. Mais grave ainda quando essa informação, difusa e incontrolável, foi difundida em plena fase final da campanha pelo diretor do FBI responsável pela alegada investigação ainda em segredo de justiça (o caso, entretanto, parece aparentemente encerrado).

Deixemos por agora de parte, esperando bons resultados, a mediática Web Summit, enquanto lado bom do ciberespaço e olhemos um pouco mais para o lado negro ou, pelo menos cinzento e imprevisível, desse mesmo ciberespaço: a sua utilização no combate, quer entre Estados, quer entre empresas quer, cada vez mais, entre atores políticos.

Marshall McLuhan, um dos precursores da teoria da comunicação formulou, há mais de trinta anos, o conceito de aldeia global. McLuhan previu então um novo conceito de sociedade, completamente interconectada e dominada pelos meios de comunicação eletrónicos. Estes novos meios, ao aproximarem as pessoas de todas as latitudes, permitiriam que estas se conhecessem melhor, comunicando entre si, como numa aldeia.

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Também, o recentemente falecido Alvin Toffler, no seu famoso livro A Terceira Vaga (1980), antecipou o mundo tal como hoje o conhecemos, designando como sociedade da informação, o último estádio da humanidade, uma aldeia global eletrónica, onde as pessoas podem aceder a uma serie infindável de serviços e informação, participar num mundo interativo, construindo uma verdadeira comunidade baseada, não na geografia, mas em interesses comuns.

O espaço cibernético intensificou ainda as transformações sociais nos mais diversos domínios da atividade humana, novidade que Manuel Castells designou oportunamente como sociedade em rede. Isto é, com o ciberespaço constituiu-se um novo espaço de sociabilidade que é não-presencial e que possui impactos importantes na produção de valor, nos conceitos éticos e morais e nas relações humanas. Porém, é sobretudo o ciberespaço enquanto nova arma e enquanto novo desafio à segurança que importa. No fundo, trata-se de refletir sobre o seu real papel, bem como conceber conceitos, estratégias, táticas e sistemas para o novo desafio que o ciberespaço coloca à ordem mundial.

O termo ciberespaço foi criado por William Gibson, em 1984, no seu livro de ficção científica Neuromancer, referindo-se a um espaço virtual composto por cada computador e utilizador conectados numa rede mundial. E quando falamos de ciberespaço estamos a referir a rede global de infraestruturas de tecnologias de informação interligadas entre si, especialmente as redes de telecomunicações, bem como os sistemas informáticos de processamento de dados, incluindo a última geração de Big Data e Cloud Computing, mas também a internet e os novos conteúdos interativos, incluindo as redes sociais e os novos media digitais. A evolução é de tal forma vertiginosa que já se alude a uma terceira vaga do ciberespaço, em que a internet, para além de conectar pessoas e coisas, passa a fazer parte das próprias coisas, no limite, de todas as coisas. Será provavelmente o potencial e características desta nova vaga que se discutirão em Lisboa por estes dias.

Mas falar de ciberespaço significa também que estamos a mudar para um novo patamar da política na era da informação, a ciberpolítica (termo cunhado por David Rothkopf ainda nos anos noventa do século passado). Tem sido, aliás, nesse patamar que tem decorrido a campanha para as eleições nos USA, com o uso maciço de redes sociais para fazer e desfazer informação em pleno combate eleitoral. Claramente o ciberespaço ao serviço da conquista e manutenção do poder.

É também o ciberespaço que está em jogo quando se questiona o referido emailgate, com a agravante de, alegadamente, ter sido a Rússia, atual potência revisionista, a divulgar o conteúdo dos emails de uma ex Secretária de Estado da maior potência mundial e sua rival histórica na arena geopolítica. Tal como acontece com os casos Snowden ou Assange. É esse ainda o ponto relacionado com as alegadas ações de espionagem industrial chinesa ou os alegados ciberataques israelitas às unidades industriais iranianas de desenvolvimento nuclear, ou, ainda, o alegado ataque botnet da Rússia à Estónia ou a utilização intensiva de drones nas atuais guerras regionais por procuração na Síria, Iraque ou leste da Ucrânia.

Assiste-se, assim, no domínio das relações internacionais, à emergência de novas ameaças que põem em crise o tradicional e já periclitante equilíbrio mundial a partir da rede cibernética, ameaças que deslocam o campo de batalha para o ciberespaço. Ou seja, não só as tecnologias mudam o mundo, como provocam um novo sentimento de insegurança e um consequente medo difuso em torno de uma eventual ciberguerra claramente não convencional.

Henry Kissinger, no seu último livro, A Ordem Mundial (2014), salienta mesmo que, “O mundo contemporâneo herda o legado de armas nucleares capazes de destruir toda a vida civilizada. Mas por mais catastróficas que pudessem ser as consequências, o significado e a utilização dessas armas ainda podiam ser analisadas em termos de ciclos diferenciados de guerra e paz. A nova tecnologia da internet abre cenários inteiramente inéditos. O ciberespaço põe em questão toda a experiência histórica. (…) As ameaças resultantes do ciberespaço são nebulosas e indefinidas (…). O ciberespaço deu origem, em certos aspetos, ao estado natural sobre que especulavam os filósofos.”

Garantir a segurança na ordem mundial significa, sobretudo, assegurar os chamados global commons, isto é, a liberdade de acesso e de circulação no espaço marítimo, no espaço aéreo, no espaço extra atmosférico e, atualmente, no ciberespaço ou espaço cibernético. Sendo certo que a ordem não deve ter prioridade sobre a liberdade, a verade é que é preciso criar uma nova ordem para lidar com o caos, a falsa liberdade, o estado de natural, que caracterizam o ciberespaço.

Quando a presente ordem mundial, criada na segunda metade do século XX, está a começar a implodir ou, na perspetiva mais benigna, a reconfigurar-se (ver, sobre o tema, Carlos Gaspar, na sua excelente e oportuna obra O Pós Guerra Fria, 2016), será este o grande desafio da política, da estratégia e do pensamento em segurança e defesa para os tempos mais próximos.

Professor universitário