Os debates quinzenais têm vindo a degradar-se progressivamente. Na minha perspectiva, irreversivelmente. Porque aquilo que aconteceu no debate desta semana, com troca de acusações e insultos e recurso a inusitadas “defesas da honra” não é fruto de uma crispação momentânea, antes corresponde a escolhas políticas e sinaliza tempos novos que não são, nem serão, agradáveis de viver.

Comecemos pelo princípio e sejamos claros: na degradação do nível do debate parlamentar não têm todos a mesma responsabilidade.

Primeiro, porque o que aconteceu nesta quarta-feira está directamente relacionado com o que aconteceu há duas semanas, altura em que o primeiro-ministro, mesmo no fim do debate e numa altura que não admitia réplica, fez uma insinuação rasca e uma acusação demagógica. Já escrevi sobre esse episódio, considerando que nessa ocasião António Costa se empenhara em retirar à esquerda radical o exclusivo do discurso extremista, adoptando um registo populista e fazendo acusações veladas sobre o caso das offshores que, afinal, se viraram contra ele próprio (a maior parte do dinheiro não registado nas estatísticas era referida em relatórios que só foram entregues à Autoridade Fiscal já Costa era primeiro-ministro). O primeiro a enlamear o debate foi o primeiro-ministro e líder de um partido que, como escrevi na altura, devia ter mais cuidado – como de resto se viu – quando atira lama para o ventilador.

Um combate quinzenal em insultos e defesa da honra no ringue parlamentar

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Depois, porque a degradação do debate parlamentar a que temos assistido não é apenas a continuação de um longo processo, antes representa um regresso a um passado muito concreto: ao estilo dominante sempre que, no lugar onde hoje se senta António Costa, se sentava José Sócrates. A tática de nunca responder às perguntas da oposição e de estar sempre a atacá-las quando o debate devia ser um momento de prestação de contas por parte do Governo foi uma constante no consulado socrático (tão constante que, sabemos agora pela autobiografia de Cavaco Silva, chegou a ser tema em algumas das reuniões de quinta-feira entre PM e PR).

Quem acompanha há algum tempo e com atenção o que se vai passando no Parlamento recorda-se que, quando a maioria mudou e foi Passos Coelho que se sentou na cadeira de primeiro-ministro, o tom alterou-se. O então líder da oposição, António José Seguro (a quem se deve, registe-se a iniciativa de tornar obrigatórios estes debates quinzenais), foi muitas vezes duro e incisivo nas suas perguntas, o país até passava por uma crise complexa e muito sofrimento, mas o radicalismo verbal ficava, regra geral, por conta da bancada de Catarina Martins (o PCP, justiça lhe seja feita, sempre foi mais respeitador das regras do decoro parlamentar).

Dos seis protagonistas destes debates (se incluirmos Os Verdes), quatro continuam na Assembleia: Passos Coelho, Jerónimo de Sousa, Heloísa Apolónia e Catarina Martins. Dois são novos: Assunção Cristas substituiu Paulo Portas, mas não foi seguramente desse lado que chegou o registo mais abrasivo. Este é todo da responsabilidade daquele que foi durante muito tempo o número dois de José Sócrates (e que nessa condição, recorde-se, nunca viu nada, nunca soube de nada, nunca encontrou nada de estranho na actuação do antigo primeiro-ministro…). Os debates voltaram a estar hoje mais azedos porque essa é a escolha de quem lidera o PS – e não o digo apenas a pensar nas táticas parlamentares de António Costa, na forma como foge às perguntas para depois reagir com caneladas numa altura em que as oposições já não têm direito de réplica. Digo-o recordando todas as escolhas que os socialistas foram fazendo e que traduzem, também na frente parlamentar, o seu novo radicalismo.

Basta recordar, por exemplo, que quando o governo minoritário (e condenado) de Passos Coelho levou o seu programa ao Parlamento, quem Costa escolheu para abrir a ronda de perguntas ao então primeiro-ministro foi Pedro Nuno Santos, aquele socialista (agora ministro) agora encarregue de tratar das negociações à esquerda e que, na anterior legislatura, sempre que intervinha era para defender ideias mais próximas das do Bloco de Esquerda do que das do seu próprio partido.

Ou lembrar como Ferro Rodrigues, escolhido por Costa para liderar a bancada depois da sua chegada à liderança, logo tratou de imprimir um rumo e um estilo à intervenção parlamentar dos socialistas que me levou a escrever (em Outubro de 2014) que não iria haver, nos próximos tempos, compromissos políticos do PS com os partidos à sua direita que não passassem por estes antes se renderem às suas posições. É esse mesmo Ferro Rodrigues, promovido a presidente da AR, que agora diz que a direita tem de se habituar “às novas regras” no Parlamento, como se essas regras tivessem mudado, como se o respeito por regras que não mudam de acordo com a vontade de maiorias transitórias não fosse a condição principal para o regular funcionamento da democracia e, nesta, da sua casa dos eleitores que é o Parlamento.

Se olharmos mais de perto para a evolução do radicalismo verbal do PS sob a direcção de António Costa constatamos que ela obedece a uma viragem que não devemos tomar por conjuntural, pois integra-se num movimento de fundo mais profundo e que pode ter consequências mais inquietantes.

A evolução conjuntural é a que reconduziu o PS à agressividade dos tempos de José Sócrates (de quem, também é bom lembrar, o actual líder da bancada socialista, assim como o porta-voz do partido, foram paladinos até para lá da última hora). Traduz, como já defendi, o regresso às mesmas raízes jacobinas dos republicanos de Afonso Costa durante a I República e à sua forma de impor uma hegemonia criando linhas “intangíveis” que ninguém está autorizado a tocar a não ser o PS. Nos dias que correm essas linhas são as que os socialistas reivindicam terem sido definidas pelos diferentes “pais” do nosso regime e de que são eternos e incontestados intérpretes.

Mais: esta evolução insere-se num movimento de fundo para que alertei há quase cinco anos, no verão de 2012. Escrevi então que algumas discussões tribais que então cruzavam o espaço público não podiam ser ignoradas pois coincidiam e reforçavam “a tentativa de refazer o espaço da esquerda não de acordo com os pergaminhos democráticos e reformistas do Partido Socialista, mas antes no molde jacobino e absolutista da esquerda radical”.

Mal sabia eu até que ponto estava a ser premonitório. Mas sabia eu como aquilo que estão já me preocupava – estarmos a criar uma espécie de campo de ruínas onde os restos dos consensos políticos soçobram face a “barreiras de intolerância alimentadas por uma acrimónia irrestrita” – teve neste debate semanal uma tão eloquente ilustração.

E o pior é que, neste campo de ruínas, não é apenas o prestígio das instituições que sai beliscado, como cinicamente referiu no Parlamento um das habituais incendiárias, Catarina Martins. O pior é que este clima de crispação pode transmitir-se gradualmente ao tecido social, havendo já disso indícios nas redes sociais que, em Portugal, não são mais civilizadas do que nos Estados Unidos. Nem mais tolerantes.

Populismo? Quem disse que a peste não tinha chegado a Portugal?

Não julguem, mais uma vez, que estou a divagar. Se algo caracteriza a América de hoje – que é a que elegeu Donald Trump – é a sua profunda divisão, alimentada por guerras cada vez mais extremadas entre democratas e republicanos. Se algo também a caracteriza são sinais de intolerância e de incapacidade de sequer ouvir os argumentos de quem discorda de nós. Isso mesmo voltou a acontecer esta semana em mais um campus universitário, o do Middlebury College, no Vermont, onde uma multidão de estudantes radicais impediram pela violência a palestra de um académico conservador, Charles Murray. Lá eventos como este já se tornaram rotina, por cá tivemos uma primeira amostra esta semana com a desmarcação, depois de ameaças, de uma conferência de Jaime Nogueira Pinto na FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

Tudo isto significa que em Portugal já se está a brincar com o fogo. A opção por um discurso agressivo e radical, para mais alimentada pelo primeiro-ministro em pessoa, não é um acidente nem apenas uma questão de estilo. Corresponde a uma opção política que pretende dispensar qualquer compromisso ao mesmo tempo que desliza paulatinamente para posições cada vez mais condicionadas pela esquerda radical.

Não fosse a União Europeia e a necessidade de amparo do Banco Central Europeu e já nem saberíamos onde estaríamos.