Vamos lá fazer a lista. Tribunal de Contas, Unidade Técnica de Apoio Orçamental, Conselho de Finanças Públicas, Instituto Nacional de Estatística, Banco de Portugal, Assembleia da República, Governo, Comissão Europeia, Inspecção-Geral de Finanças. Assim por alto, as contas públicas portuguesas são analisadas, aconselhadas, aprovadas, escrutinadas e apuradas por estas nove entidades (entre funções complementares e sobrepostas e sem contar com o FMI e o BCE, integrantes da passageira troika). E, no entanto, é o que se vê. Ninguém consegue dominar a fera. Algumas vezes por falta de jeito, a maior parte das vezes por falta de vontade dos governos, as contas públicas são absolutamente indomáveis. São uma espécie de Hannibal Lecter da economia, conseguem sempre escapar ao policiamento apertado mesmo quando isso parece tarefa impossível. E tal como a sinistra personagem, vão deixando atrás de si um rasto de vítimas inocentes. Mas aqui não é ficção, a devastação é bem real.

Lá escapámos às sanções. Elas estiveram muito perto, talvez na única oportunidade em que não deveriam ter estado. Temos atenuantes à vista e o momento europeu aconselha a tudo menos a demonstrações de força cegas e burocráticas. Foi uma decisão política sensata. Se, depois disto, as sanções algumas vez serão aplicadas no futuro é outra história. Eu apostaria que não, porque não há uma segunda oportunidade para causar uma primeira impressão. Assim sendo, não valeria mais rasgar definitivamente os capítulos referentes às sanções, para proteger do descrédito as instituições que têm que as aplicar?

Mas voltando à saga do gato e do rato, ou dos polícias e ladrões – sem ofensa para nenhuns dos quatro, estamos no campo das metáforas sem segundas intenções -, o curioso é a eterna simpatia que os faltosos sempre nos merecem. Entre os que querem escapar e libertar-se de metas mais apertadas para o défice e os que querem impô-las, uma grande parte dos cidadãos torce pelos primeiros e diaboliza os segundos.

E não interessa se falamos de “polícias” como o Banco de Portugal, a Comissão Europeia ou o Conselho de Finanças Públicas. Ou se no governo estão partidos da esquerda ou da direita. Ou ainda se falamos da actualidade ou do passado, seja ele menos ou mais longínquo. Este é um verdadeiro desporto nacional com muitos adeptos.

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As metas do défice passaram de 2,2% para 2,5%? É uma vitória nossa contra eles. Mas vitória de quê e porquê? Quanto muito, devíamos admitir com pesar e lamentos sentidos que estamos a falhar. E falhamos sobretudo contra nós próprios porque a factura dos défices mais elevados é nossa, agora e no futuro. Não vejo como possa ser uma coisa positiva “per se” aumentar-se o défice em 500 milhões de euros e deixar mais essa dívida para as próximas gerações pagarem.

Sim, em tudo é preciso gradualismo e bom senso, sob pena de se matar o doente com a cura. Mas a impossibilidade de o fazer mais depressa e com equilíbrio devia preocupar-nos em vez de nos aliviar. Tal como uma família não fica mais aliviada quando chega ao fim do mês e não consegue pagar as suas contas.

Esta forma de olhar para o equilíbrio contas públicas como algo que opõe os “bons” que gostam de fazer mais despesa e adiar a descida do défice aos “maus” que querem lá chegar mais depressa, é um traço cultural que não pára de nos trazer amargos de boca. Mas gostamos desta nossa característica indisciplina, que para muitos até é uma saudável rebeldia. Uma rebeldia cara e da qual somos as únicas vítimas, diga-se.

Tempos houve em que, incapazes de o fazermos interna e autonomamente, as intervenções e vigilâncias externas eram eficazes. Cumprimos bem os dois primeiros programa de assistência do FMI, que foram eficazes para o que na altura (décadas de 70 e 80) era essencial, e chegámos às metas de Maastricht para entrar no euro, nos anos 90. Devidamente vigiados por Bruxelas, claro.

Mas agora já nem os santos de fora fazem milagres. A avaliação que o FMI ontem fez aos programas de ajustamento em Portugal, Grécia e Irlanda é um exercício importante de auto-avaliação mas as conclusões a que chega não surpreendem. Basta olhar para o ponto em que nos encontramos para perceber que pouco mudou de forma duradoura. O país saiu da fase de emergência extrema de falta de financiamento mas continua com as fragilidades de sempre. A poupança escassa que o FMI aponta como problema central continua a ser anémica. E, sobretudo, continuamos com dificuldades em auto-sustentar-nos.

À nossa histórica falta de capacidade para nos governarmos junta-se agora a incapacidade externa de nos ajudarem a governar-nos. As soluções do passado, quando as economias eram mais fechadas e os fluxos financeiros menores e mais lentos, são irrepetíveis. Viver eternamente da caução da credibilidade alemã, holandesa ou finlandesa também é receita esgotada, como se viu nos últimos cinco anos.

O que nunca tentámos foi a velha fórmula de equilibrar as contas e mantê-las certas de forma duradoura, amealhando na abundância para poder gastar mais um pouco na escassez. Mas, está à vista, isso é contra a nossa natureza. A nossa natureza é mais de andarmos permanentemente à rasca. Continuaremos a pagar por isso.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com