Na vasta e rica literatura japonesa há uma página especialmente importante. A sua relevância advém não só de ser um trecho conhecido por todos os japoneses, novos e velhos. O seu principal valor deriva de reflectir, e ao mesmo tempo formar, o carácter nacional como nenhum outro e de exprimir o dilema que todo o japonês enfrenta na sua vida: a escolha difícil entre o ditame da consciência e o que a sociedade lhe impõe por direito positivo ou consuetudinário ou apenas por simples expectativa grupal. A passagem do Heike Monogatari 平家物語, um relato das Guerras Genpei 源平合戦, ocorridas entre 1180 e 1185, é a seguinte:

“Logo a seguir à batalha de Ichi no Tani [batalha travada em 7.2.1184 entre os Taira e os Minamoto, em Suma, actual Kobe, um dos mais famosos confrontos dos muitos que puseram frente a frente os dois clãs na sua luta pelo controlo sobre a pessoa e autoridade do Imperador], Kumagai no Naozane dirigiu o seu cavalo para a praia. Reflectia ele: ‘Os comandantes Taira irão com certeza fugir para o mar na esperança de subir a bordo dos seus navios de apoio. Como seria bom poder dar combate a um dos seus comandantes de mais alta patente!’

Nesse mesmo momento, observou um cavaleiro solitário a entrar no mar e a dirigir-se para um navio que se encontrava ao largo. Tinha trajes de seda bordada com garças-reais, uma armadura ricamente decorada e capacete de combate. No peito trazia uma espada com ornamentos de bronze e às costas uma aljava contendo setas adornadas com penas brancas de águia. Na mão segurava o arco e montava um cavalo branco com sela embainhada a ouro. Quando já tinha avançado a distância de uns cem passos, Naozane fez sinal ao cavaleiro com o seu leque e gritou:

– Vejo que sois um comandante. É vergonhoso mostrardes as costas a um inimigo. Volta para trás!

O guerreiro deu meia volta. Quando estava a sair da água, Naozane galopou na sua direcção e, agarrando-o com toda a sua força, fê-lo cair consigo no chão. Conseguindo-o imobilizar arrancou-lhe o capacete para lhe cortar a cabeça. Teria uns dezasseis ou dezassete anos [nota: na tradição japonesa uma pessoa ao nascer já tinha um ano e portanto “dezasseis ou dezassete” indicam os nossos “quinze ou dezasseis” anos], uma face de pele delicada, pálida do pó-de-arroz, e os dentes tingidos de preto; era um rapaz exactamente da mesma idade que Kojirō Naoie, o filho de Naozane, e tão bem parecido que o velho guerreiro não conseguia decidir-se por onde golpear. Disse-lhe:

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– Quem sois? Dizei-me o vosso nome que vos pouparei.

Respondeu o jovem:

– Quem sois vós?

– Ninguém de importância: Kumagai no Naozane, da província de Musashi.

– Não é, então, necessário dar-vos o meu nome. Sou o oponente que vós desejais. Perguntai quem eu sou depois de me terdes cortado a cabeça. Alguém me reconhecerá mesmo que eu não vos diga o meu nome.

Considerou Naozane:

‘Em verdade deve ser um dos Comandantes. Matá-lo não mudará a derrota em vitória, nem poupá-lo mudará a vitória em derrota. Quando penso na dor que senti quando Kojirō recebeu um pequeno golpe, é fácil imaginar o desgosto que o Pai deste jovem Senhor teria se soubesse que o seu rapaz tinha sido morto. Não tenho remédio senão poupá-lo.’

Enquanto assim pensava olhou para trás e percebeu que Sanehira e Kagetoki cavalgavam na sua direcção com uns cinquenta cavaleiros.

Tentando conter as lágrimas disse ao jovem:

– Gostaria de vos poupar, mas há guerreiros Minamoto por todo o lado. Não há possibilidade de poderdes escapar. É melhor ser eu a matar-vos do que qualquer outro porque eu… eu rezarei por vós.

Replicou-lhe o outro:

– Cortai a minha cabeça e cortai-a depressa.

Esmagado de compaixão, Naozane não conseguia discernir onde golpear. Começou a sentir os sentidos a esvaírem-se, o espírito a abandoná-lo e a perder a consciência de onde estava. No entanto, a percepção de que a situação não se podia alongar trouxe-lhe de volta os sentidos e, sem procurar conter as lágrimas, tomou a cabeça do jovem. Meditava:

– Não existe pior destino que o do guerreiro. Nunca teria passado por esta terrível experiência se não tivesse nascido numa família de samurai! Que crueldade matar uma criança! – Ajoelhado, comprimiu a manga na sua face e chorou livremente.

Depois de muito tempo nesta posição, começou lentamente a remover a armadura para a juntar à cabeça. Um saco de brocado contendo uma flauta estava preso ao peito.

– Quão deplorável! Ele deve ter sido um daqueles que ouvi tocar dentro da fortaleza antes do nascer do sol. Há dezenas de milhares de cavaleiros nos exércitos do Leste, mas tenho a certeza de que nem um só deles trouxe a flauta para o campo de batalha. Estes Taira, na sua proximidade com a Corte, refinaram-se.

Quando Naozane apresentou os seus troféus ao Generalíssimo Minamoto no Yoshitsune para inspecção, todos os que estavam presentes se comoveram. Soube-se depois que o jovem decapitado era Tayū Atsumori, de dezassete anos, filho de Tsunemori, o Mestre dos Oficiais de Manutenção dos Palácios Imperiais. A flauta que trazia ao peito tinha sido oferecida pelo Imperador Emérito Toba ao avô de Atsumori, Tadamori, que tinha sido um grande músico. Diz-se que Tsunemori, que a herdara, a tinha oferecido ao seu filho Atsumori devido a este ser excelente flautista.

Ao tomar conhecimento de tudo isto, Naozane decidiu entrar na vida monástica.”

Kumagai no Naozane 熊谷直実 (1141—1208) cumpriu o que se esperava dele e, ao ter tido “a sorte” de poder matar um comandante inimigo, cobriu-se de glória. Fê-lo livremente mas contra vontade. Era soldado e sabia o que se esperava de um soldado e fez o que se esperava de um soldado. Era homem e sabia o que se esperava de um homem mas porque era soldado não pôde fazer o que se esperava de um homem: ser humano. Era consciente de que o que fazia ia contra a humanidade com que todos os seres humanos merecem ser tratados. A sua miséria está em ter cumprido o seu dever de soldado, mas sua grandeza revela-se na consciência de que o que fazia ia contra a recta razão e o são sentimento. A sua grandeza revela-se também na vontade de reparar, na medida do possível, os danos causados aos dois: através da oração a injúria feita ao jovem pela sua morte prematura; através da vida ascética o dano causado à sua própria humanidade ao praticar uma desumanidade.

Mas se Naozane sabia que não devia matar futilmente, porque terá morto inutilmente? Não foi por ódio, não foi por vingança, não foi por interesse pessoal. Foi apenas porque era soldado e dois companheiros de armas se aproximavam dele. Naozane atuou contra a sua consciência devido a uma pressão social que se fazia sentir a uma distância de algumas centenas de metros.

Embora esta passagem seja quintessencialmente japonesa tem um valor universal. Em todas as culturas há maior ou menor pressão para as pessoas se conformarem. Embora essa conformidade seja benigna na maior parte dos casos, situações existem que são malignas, e então surgem dilemas éticos como os de Naozane. A origem destes dilemas está, como explica o Catecismo da Igreja Católica (CCC, n.1869) no “pecado [que] torna os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a concupiscência, a violência e a injustiça. Os pecados provocam situações sociais e instituições contrárias à bondade divina; as «estruturas de pecado» são a expressão e o efeito dos pecados pessoais e induzem as suas vítimas a que, por sua vez, cometam o mal. Constituem, em sentido analógico, um «pecado social».” E que é pecado? “Pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a recta consciência. É uma falha contra o verdadeiro amor para com Deus e para com o próximo, por causa dum apego perverso a certos bens.” (CCC, n. 1849) Mas um “pecado social”, ou estrutura social de opressão, é também e sempre individuado numa acção pessoal, como o Tribunal de Nuremberga recordou aos responsáveis nacional-socialistas que se desculpavam das atrocidades cometidas com a necessidade que os militares e funcionários públicos têm de se conformar e cumprir ordens superiores.

E que dizer de Taira no Atsumori 平敦盛 (1169—1184)? Era jovem, bem-parecido, rico, famoso, poderoso e tinha toda uma vida à sua frente. É verdade que tinha perdido uma batalha. Mas também muitos outros generais por esse mundo fora perderam batalhas, foram feitos prisioneiros, e depois deram a volta à sua situação e conquistaram meio mundo. O que têm o desaire e a dor de um dia que faça alguém querer a sua própria morte? A razão foi, mais uma vez, a pressão social. Atsumori foi vítima de uma subtil pressão cultural, que mais uma vez atuou como uma estrutura social de opressão ou pecado social, que lhe dizia que seria uma desonra ser feito prisioneiro, que seria considerado pelo inimigo e pelos do seu clã não como um que perdeu uma batalha, que isso acontece mesmo aos melhores até no Japão, mas como um pusilânime que prefere a desonra da captura à morte. Atsumori tinha um apego perverso a um certo bem: a sua fama e o seu bom nome. Embora vitima, também ele colaborou com uma estrutura social de opressão ao pedir a sua morte.

É portanto preocupante quando vemos forças social-nacionalistas montarem em Portugal, perante a indiferença quase geral, novas estruturas sociais de opressão a adicionar às que já existem. A mais recente é a proposta de legalização do homicídio medicamente executado (ou assistido) de pessoas que, num mau momento da sua vida, e sob o sofrimento presente ficam cegas para as possibilidades que o futuro lhes reserva, e gritam como Atsumori: “cortai a minha cabeça e cortai-a depressa.” Se o homicídio medicamente assistido for legalizado, não o permita Deus nem as instituições democráticas!, quantos Atsumori não aparecerão? E quantos médicos e outros profissionais da saúde não enfrentarão o dilema de Kumagai no Naozane?