Há sentimentos contraditórios para quem vê o filme «Silêncio». Longe de uma história de heroísmo, estamos perante um exemplo de provação – muito mais do que de dúvida. Dir-se-ia que há uma revisitação do drama da negação de S. Pedro. No entanto, é muito mais do que isso, uma vez que a apostasia, tratada em diversos registos, baseia-se na relação paradoxal entre fé e caridade, entre o amor de Deus e o amor dos Outros.

O caso que serve de base ao romancista Shusako Endo (1923-1996) liga-se à apostasia do Padre Cristóvão Ferreira em 1633 – caso inédito até então. Perante as perseguições, havia que resistir. Daí que os jesuítas tenham assumido a exigência da conciliação cultural, como nos ritos na China. E tudo começa com um dado dramático: “A notícia chegou à Igreja de Roma. Enviado ao Japão pela Companhia de Jesus, Cristóvão Ferreira, submetido à tortura da fossa em Nagasáqui, apostatara. Missionário experiente, credor da maior estima, Ferreira já vivia no Japão há trinta e três anos.”…

As cartas que, entretanto, mandara da região de Kamigata revelavam uma grande determinação e coragem. Essas missivas não faziam suspeitar ou prever qualquer negação. É verdade que a partir de 1587, sob a orientação do regente Hideyoshi, a perseguição ao Cristianismo tornou-se violenta e persistente, no entanto pouco se sabia sobre os procedimentos adotados para extirpar a influência cristã. Silêncio parte das informações obtidas pelos Padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe sobre o que se tinha passado com o Padre Ferreira. O romance é constituído pelas cartas de Rodrigues e por outras informações, que nos levam aos estranhos acontecimentos que conduziram à apostasia do mais proeminente dos missionários no Japão…

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O tema crucial da obra de Scorcese é o da barreira cultural entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. O «Silêncio» é um filme tão difícil como o romance de Endo, recebido com reticências pelos cristãos japoneses, em 1966. Graham Greene considerou, no entanto, o romance uma obra-prima. O cristianismo nipónico é heterogéneo e surpreendente – os mártires coexistem com os cristãos escondidos, os que preferiram o testemunho público e os que mergulharam na sociedade, divididos entre as fidelidades do gesto e do princípio. A dúvida liga-se ao remorso. E Cristo representado no fumie, a pequena placa usada para consumar a apostasia, diz: “Podes pisar-me!”. Afinal, o mistério do silêncio está no centro desta reflexão, como ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima.

A distância cultural torna-se mais forte que os julgamentos precipitados de traição. O Padre Ferreira é obrigado a defrontar-se com as consequências de uma opção limite em que a fé pessoal está ligada ao destino de muitos cristãos japoneses condenados ao sacrifício supremo pelo qual ele se sente responsável. E neste ponto não pode deixar de se lembrar a meditação angustiosa sobre o porquê da missão de Judas, porquê haver um apóstolo condenado à partida pelo facto de lhe caber a tarefa necessária de entregar o Mestre. Quantos dramas pessoais repetem esse exemplo evangélico? “Basta, Senhor, basta! É agora o momento de quebrares o silêncio. Já não te podes calar por mais tempo. Mostra que és a justiça, a bondade, o amor por excelência. Tens de dizer alguma coisa para que o mundo saiba que existes”. Esse silêncio pesado domina o drama de quem tem de escolher entre o amor e a morte, sem saber exatamente onde estão um e o outro.

A apostasia concretizava-se pisando a imagem de Cristo. “Por amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. E Ferreira dirá ao ouvido do novo apóstata: “Você vai agora realizar o mais doloroso ato de amor de que jamais alguém foi capaz”. Afinal: “Quando o padre assentou o pé no fumie nascia a manhã. Ao longe, um galo cantou”… O drama existencial é tratado magistralmente, não devendo apenas situar-se num momento histórico, já que se projeta numa tensão civilizacional, entre as tradições milenares do Japão, o culto dos antepassados e o sincretismo religioso. “O problema da reconciliação do Catolicismo com o meu sangue japonês… ensinou-me uma coisa (diz Endo): que o homem japonês tem de absorver o Cristianismo sem o suporte de uma tradição, de uma história, de um legado, ou de uma sensibilidade cristãs. Que resistências, que angústias e sofrimentos tem custado esse esforço! Todavia é impossível resistir-lhe fechando os olhos às dificuldades. Não há dúvida: esta é a cruz peculiar reservada por Deus aos japoneses”.

(Texto originalmente escrito para o jornal do Patriarcado de Lisboa, Voz da Verdade)