Pequenos troféus linguísticos podem ser reveladores das razões de não conseguirmos sair do pântano cultural e civilizacional em que nos atolamos. São particularmente elucidativas analogias entre o que hoje acontece com o anti-‘politicamente correto’ e o passado recente do anti-‘eduquês’.

Quando há bem mais de uma década era claro para onde as então eufóricas ‘ciências da educação’ conduziam o sistema de ensino, a onda de arrebatamentos críticos gerada nesses anos espraiou-se sem consequências. De então para cá, a indisciplina nas salas de aula e a violência em contexto escolar têm progredido de forma inexorável, fenómenos em si reveladores de falhanços cívicos coletivos. E nenhum desses fenómenos é consequência inevitável da massificação do acesso ao ensino. São antes produtos da ação de instituições, indivíduos e ideologias concretas que tutelam o ensino e, por essa via, a vida social no seu conjunto.

Destaco quatro núcleos que permitiram a alguns de nós, a partir do interior das salas de aula, ver nascer, crescer e prosperar o poder corrosivo do marxismo cultural nas décadas recentes.

Um primeiro núcleo reside nos ataques concertados à função social dos professores. Ao conferirem estatuto ‘científico’ a utopias de génese revolucionária, as universidades tornaram-se fertilizantes exímias do terreno intelectual de onde germinam catadupas de crendices. Os professores passaram a ser formatados na crença de que não são eles quem ensina, antes são os alunos que aprendem. Não são eles que devem impor regras nas salas de aula, antes aquelas devem ser negociadas com os alunos (como se entrar a horas, trazer o material necessário e estar quieto e calado fossem regras complexas). Não são eles quem deve avaliar, antes é essencial a autoavaliação dos alunos tal como a lei passou a impor. Os resultados têm-se traduzido numa persistente erosão da função institucional e social dos professores, arrastando a qualidade e dignidade global do seu trabalho. Professores que não tenham no âmago do sentido da sua existência os deveres de ensinar, impor regras e avaliar tornam-se imprestáveis. Mas é isso que permanece latente nos discursos e práticas dos que tutelam o ensino, entre ‘cientistas da educação’, sincalistas e políticos besuntados de marxismo cultural.

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Um segundo núcleo é o do sistema de classificação dos resultados escolares. Têm sido décadas de sociopatia legislativa que aniquilou o significado social da escala de 0 a 20 valores. Essa escala era simples, transversal aos diversos níveis de ensino e estável, características que geravam, só por si, sólidas relações de confiança entre o trabalho realizado nas salas de aula e a vida quotidiana. Mesmo os mais iletrados entendiam a expressão “Vales 20 valores!”.

Da tempestade marxista hoje sobra uma selva anárquica. Existem os níveis de 1 a 5 no ensino básico (1º ao 9º anos) que, por sua vez, são gerados a partir de um sistema de percentagens (0% a 100%), este sobreposto por designações qualitativas como ‘Muito Fraco’, ‘Fraco/Insuficiente’, ‘Satisfaz/Suficiente’, ‘Bom’, ‘Muito Bom/Excelente!’. O leque é ainda complementado por avaliações e relatórios descritivos intermináveis. Nesse sistema, as classificações e avaliações quantitativas e qualitativas tendem a anular-se mutuamente. A selva não termina aqui. De um ano para outro com a entrada no ensino secundário (10º ao 12º anos), muitas vezes num mesmo estabelecimento de ensino e com os mesmos docentes e alunos, a escala de classificação dos resultados escolares transfigura-se para 0 a 20 valores, também esta acompanhada pela respetiva parafernália. Em suma, fundiu-se no ensino o pior da anarquia com o pior da burocracia, manifestação mais que perfeita do marxismo cultural.

Um terceiro núcleo foi o da imposição às escolas de uma gestão inevitavelmente anárquica do tempo de aula. Ora de 90 minutos (em geral uma aberração), ora de 45 minutos (ou perto disso), por vezes na mesma semana de uma única disciplina. Assim, o tempo de aula deixou de ser um referente-chave de racionalidade e de estabilidade da vida escolar com impacto inevitável no agravamento da desregulação de atitudes e comportamentos em contexto escolar.

Face a tudo isto, foi a sociedade responsável pelo agravamento da indisciplina e da violência nas escolas ou foram as engenharias ‘progressistas’ até aqui assinaladas?

O quarto núcleo remete para a estrutura curricular. Remonta ao final dos anos noventa, pela mão da ala radical do Partido Socialista (parte substantiva do PS, sendo que a germinação do Bloco de Esquerda é produto direto da relação dos socialistas ao longo de décadas com o ensino), o vício do sacrifício de horas destinadas a disciplinas de estudo em prol disciplinas ou atividades ‘progressistas’ tão absurdas quanto financeiramente desastrosas. À época foi a introdução, nos currículos, de Área de Projeto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica, variantes hoje cobertas pelo rótulo pomposo da ‘flexibilidade curricular’. Entre outras consequências, tais escolhas políticas são responsáveis por desarrumar, nas cabeças de professores e alunos, as indispensáveis diferenças entre o espaço de recreio, o corredor de acesso às salas e as salas de aulas propriamente ditas. Tais reformas curriculares tornaram latente a ideia de que tudo – do vestuário a atitudes e comportamentos (como correr, saltar, gritar, ouvir música, jogar, cuspir, arrotar) – é legítimo em qualquer espaço do recinto escolar. As ‘reformas’ arrastaram o recreio para o interior da sala de aula. As marcadas diferenças simbólicas entre espaços que sempre fizeram escolas saudáveis (gabinete do diretor, biblioteca, bar/refeitório, recreio, salas de aula) estão hoje cada vez mais diluídas numa amálgama patológica.

O que aconteceu no domínio referido é equiparável ao que as mesmas utopias estão hoje a tentar impor às identidades de meninas e meninos (e respetivas casas de banho públicas partilhadas). E porque não festas e jogos de futebol nos cemitérios, incluindo no reservado talhão islâmico?

Quando o caminho da degradação do ensino já era evidente em inícios da década passada, aos críticos falhou a lucidez e a persistência no apontar do âmago dos fenómenos: as ‘ciências da educação’, as universidades que as alimentam e os espaços de decisão política que lhes conferem poder efetivo.

É aqui que entra o ‘eduquês’. De início o termo parecia útil por favorecer o envolvimento da opinião pública nas discussões sobre as desgraças que se abatiam sobre as escolas. No entanto, pouco depois tornou-se evidente que o seu uso e abuso prenunciava o falhanço reformista dos críticos. Na prática, atacar o ‘eduquês’ foi desviar o alvo das críticas dos verdadeiros responsáveis (os referidos) para um vácuo que não permitia responsabilizar objetivamente instituições, indivíduos e ideologias políticas claramente identificáveis. Sem esse tipo de objetividade as transformações sociais são inviáveis. Os resultados estão à vista. O uso e abuso do termo ‘eduquês’ – misto de leviandade, ignorância ou falta de coragem – responsabiliza os críticos por, há uma década, terem deixado escapar uma rara oportunidade histórica de mudar o destino coletivo.

Sinal notório desse falhanço foi o facto de, mais de uma década após a agitação crítica anti-‘eduquês’, as ‘ciências da educação’ terem tido possibilidades efetivas de eleger um seu exímio representante à presidência da República, o Prof. António Sampaio da Nóvoa.

Algo de semelhante está a repetir-se com o uso e abuso das críticas ao ‘politicamente correto’. Face aos atentados sistemáticos contra a liberdade de expressão e contra a segurança de pessoas e bens, a expressão permite popularizar as discussões, porém revelam-se crescentes os sinais de enjoo das críticas ao ‘politicamente correto’. A vacuidade desse alvo permite antecipar não apenas que nenhuma ameaça substantiva os estilo de vida europeu e ocidental será ultrapassada, como paradoxalmente funcionará como seguro de vida de instituições e indivíduos objetivamente responsáveis pelo atual mal-estar social e civilizacional. O anti-‘politicamente correto’ está a repetir o fado do anti-‘eduquês’.

Críticas substantivas são aquelas cujo alvo são instituições e indivíduos concretos comprometidos com o socialismo nas suas diversas variantes, o que inclui sociais-democratas europeus ou democratas norte-americanos. No caso português, não existem razões convincentes para diferenciar os socialistas (núcleo patológico por excelência ao longo de décadas no campo das políticas educativas e, por isso, neste caso a condescendência crítica tem sido a razão principal de frustrações reformistas nas mais diversas áreas) dos comunistas ou bloquistas.

De nada adianta tentarmos escapar a uma guerra cultural que nos tem sido imposta. O preço já é demasiado pesado.