Cada um tem, suponho, um ponto de vista particular sobre as coisas que o faz interessar-se mais por certas questões do que por outras. Comigo, é a a crença, ou, mais particularmente, a facilidade em acreditar em certas coisas, e, simultaneamente, a descrença, a dificuldade em acreditar noutras. Sobretudo quando um fenómeno ou outro ultrapassam largamente as fronteiras do que se convencionou chamar bom senso. Não falo disto de um ponto de vista exterior, é claro. Pelo menos num domínio, sensivelmente desde a adolescência, experimentei crenças absolutas que entravam largamente pelo ridículo dentro. Só posso dizer a favor delas que eram crenças inofensivas. E, já agora, que não se deve ter assim tanto medo do ridículo. Não faz muito bem à reputação, é verdade. Mas também não convém preocuparmo-nos demasiado com a reputação, provavelmente.

Há um exemplo de facilidade de acreditar que me vem muitas vezes à cabeça. Há uns doze anos, ou algo assim, as televisões noticiaram curiosos acontecimentos passados no Barreiro (ou em Almada, já não me lembro). Várias mulheres do sítio contaram aos jornalistas que haviam recebido telefonemas de uma senhora que se apresentava como médica e que lhes dizia representar uma firma médica que andava a ensaiar uma nova técnica de mamografia, a mamografia via satélite. Como se tratava de um processo experimental, ela era oferecida gratuitamente. Para que a coisa surtisse efeito, bastava que as senhoras se deslocassem a uma varanda alta, ou, em alternativa, a um descampado, tirassem a roupa de cima, inclusive a roupa interior, e acariciassem os mamilos. Este último ponto era fundamental, pois só com os mamilos devidamente excitados o satélite estaria em condições de proceder à mamografia. Às televisões, um muito apreciável número de senhoras queixou-se do que se seguiu à dita mamografia: telefonemas galhofeiros da mulher que se havia apresentado como médica e de um indivíduo que a acompanhava. A uma aconteceu pior. Ao receber o telefonema, recusou a varanda alta e o descampado. Ao que a suposta médica logo sugeriu uma alternativa. O satélite havia feito imensos progressos e já era agora capaz de, em certas condições, executar a mamografia no interior de edifícios. Aconselhou-a por isso a que se deslocasse ao corredor de um prédio em construção, não longe da loja em que trabalhava, e que procedesse aos preparativos necessários à mamografia via satélite. Assim, sim. Acontece que estava ela nos preparativos necessários à boa receptividade do satélite quando um homem, que ela já tinha visto na sua loja, entra pelo corredor e diz-lhe: “Com que então, a fazer uma mamografia via satélite!”.

Se a minha interpretação é boa, a extraordinária credulidade que levou à gargalhada o imaginativo e perverso casal, deveu-se essencialmente a duas coisas: uma confiança inabalável na prodigiosa eficácia da ciência e da tecnologia e uma não menos radical incapacidade de resistir ao apelo do gratuito. Era de graça, e o ser de graça transformava a proposta em algo de praticamente irrecusável.

Lembrei-me das mamografias via satélite ao ler o documento do PCP em que se anunciam as comemorações, para 2017, do centenário da “revolução de Outubro”. O que diz o PCP? Na essência, repete, com as mesmas palavras de sempre, o mito de uma revolução, guiada por “uma teoria revolucionária, com o notável contributo de Lénine”, que iniciou a transição para “uma sociedade sem exploradores nem explorados” e que afirmou, de forma definitiva, “o socialismo como exigência da actualidade e do futuro”, um futuro que “não pertence ao capitalismo, pertence ao socialismo e ao comunismo”. A defunta URSS, cujos magníficos sucessos são enumerados, não faltando sequer o Sputnik e Gágarin, teria aberto “o caminho da construção duma sociedade nunca antes conhecida pela humanidade” e que permanece o fim necessário da história, até porque o capitalismo se auto-destruirá fatalmente em função das sus “insanáveis contradições”. O comunismo virá de forma inexorável, trazendo a paz, a justiça, o progresso social, a liberdade e a abundância, “num prazo histórico mais ou menos alargado”.

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Comparada com esta descrição, a história das mamografias via satélite é uma brincadeiras de meninos de coro. O tão falado agora regime de “pós-verdade” tem um historial antiquíssimo. Primeiro, não houve revolução alguma em Outubro de 1917, por mais que, por exemplo, o filme estalinista de Eisenstein, “Outubro”, conte essa história tão linda. Terá havido uma revolução, efectivamente, em Fevereiro desse ano, mas em Outubro o que aconteceu foi um golpe militar do Partido Bolchevique. Depois, e como escreveu com inteira justeza o filósofo Cornelius Castoriadis: “Do empreendimento bolchevique apenas sobra, e nada mais sobrará, do que um imenso amontoar de cadáveres torturados, a criação inaugural do totalitarismo, a perversão do movimento operário internacional, a destruição da linguagem – e a proliferação no planeta de um vasto número de regimes de escravidão sanguinária”. O grau de credulidade necessário para acreditar no que nos diz o PCP ultrapassa os limites superiores da imaginação humana. E supõe uma crença na ciência – uma inencontrável ciência da história – que em muito supera a crença na possibilidade científica das mamografias via satélite.

Outro exemplo recente dessa credulidade é obviamente a reacção generalizada à morte de Fidel Castro. Não foi só o PC a tecer os mais entusiásticos elogios a Fidel e à “Ilha de Liberdade” por ele realizada. O sociólogo Boaventura Sousa Santos escreveu versos que começam com “É urgente um verso vermelho” (aconselho vivamente que se pare imediatamente de ler um poema que comece por “É urgente” – género “É urgente o amor”) e que acabam da mais desastrada das maneiras (“a criatividade própria dos vendavais”). Sócrates, como seria de esperar, falou, ao espelho, de “carisma”: Fidel “foi um dos grandes líderes carismáticos mundiais”, muito activo no “combate às ditaduras”. E Jorge Sampaio, em entrevista ao Diário de Notícias, também o lembrou “carismático” e não escondeu a sua simpatia pessoal pelo personagem: “aquela figura era de uma grande simpatia”. Entre um sem número de outras coisas assim. O socialismo via satélite não morre e encontra sempre gente disposta a submeter-se ao grotesco vexame de acreditar nele, em altas varandas, descampados ou corredores em construção.

Por reflexo, fui ler Sartre, que, nos seus muitos piores momentos, era praticamente imbatível nestas coisas. Em matéria de facilidade de acreditar, Sartre, em certas situações, não ficou nunca a dever nada a ninguém. Andou, na companhia de Simone de Beauvoir, pela tal “Ilha da Liberdade”, sem nada notar dos assassinatos, dos fuzilamentos, das perseguições e das prisões, fascinado, de acordo com uma sua obsessão particular, pela juventude de Castro e dos seus (bons tempos!) e, sobretudo, por Castro, Che e os outros não dormirem. A viril energia revolucionária manifestava-se, entre outras coisas, em todas aquelas reuniões, conversas e entrevistas às duas e três da manhã, muito propícias à “lua de mel da revolução”. Castro, parece, batia recordes na paixão de não dormir, exibindo assim a sua superior condição de revolucionário. É, de resto, muito curiosa esta fascinação dos comunistas pelas noites em branco. O horrível Pablo Neruda, na grotesca tentativa de competir com o Whitman de Leaves of Grass que é o Canto general, também escreveu que Estaline, nos seus três quartinhos do Kremlin, prolongava o seu trabalho noite dentro, porque o mundo e a sua pátria, uma parte de si mesmo, não lhe davam repouso. Há horas, suponho, mais favoráveis do que outras para assinar ordens de prisão e de fuzilmento. (Os nossos miméticos “capitães de Abril”, como lembrou há algum tempo Helena Matos aqui no Observador, também eram “homens sem sono” – embora, graças a Deus, as suas combustões mentais se restringissem a domínios menos vastos do que os de Estaline e de Fidel.) Ainda sobre Sartre: acabou por romper com Castro em 1971, por causa da perseguição por este ao poeta cubano Heberto Padilla, um dos muitos intelectuais cubanos que Fidel condenou ao pior destino, num dos momentos em que exercitava a sua crueldade de ditador sobre entidades mais elevadas do que os homossexuais e a arraia miúda em geral.

A crença no socialismo via satélite tem vida longa e prologar-se-á, sem dúvida, muito para além do muito previsível fim do actual regime cubano (o que Mario Vargas Llosa disse a este respeito parece-me uma evidência). Por cá, felizmente, essa crença limita-se ao que se passa em mais ou menos longínguas plagas. A nossa pacata crença no “costismo via satélite” está longe de ser tão perigosa, mesmo que as consequências possam ser péssimas. E, sobretudo, ela não é ditada por qualquer convicção nas leis de uma ciência da história. É mesmo pela apetência irrecusável do gratuito, é essa apetência que dita os resultados das últimas sondagens para o PS. Claro que o aparente gratuito se vai pagar caro. Mais cedo ou mais tarde aparece por cá um senhor estrangeiro e pergunta-nos: “Com que então, a fazer costismo via satélite!”. E vamo-nos, depois, queixar à televisão.