Sobre o referendo britânico já muitos e muito mais habilitados do que eu fizeram a sua análise, também aqui no Observador.

Ainda é cedo para perceber se a Europa vai ler devidamente o grito dado pelos eleitores britânicos ou se segue com o “business as usual” pelo facto do Reino Unido sempre se ter colocado com meio pé fora da União. Talvez a saída do país desta Europa tivesse mesmo que acontecer, mais cedo ou mais tarde.

A saída dos britânicos terá, naturalmente, um impacto económico muito para além da natural “espuma” dos mercados nestes primeiros dias de choque. Mas o impacto político deverá, ainda assim, ser maior. E talvez o mais importante seja a caixa de Pandora que se abre. A saída de um país da UE – logo o Reino Unido e como resultado de uma consulta popular num contexto que não é de emergência política, económica ou social – mostra que é possível sair e em poucas horas ouvimos várias vozes partidárias em vários países a pedir também a consulta popular aos seus cidadãos. É certo que esses apelos vieram de partidos extremistas, xenófobos, – em França, na Holanda e na Itália – prontos a cavalgar essa onda. Mas é prudente não arrumar essa questão na gaveta dos desvarios da extrema direita, seguindo em frente como se a questão britânica não tivesse um potencial de contágio. O risco de desintegração da União existe e nunca foi tão acentuado como agora.

Foi seguindo esta linha que tentei imaginar Portugal num cenário extremo de desmantelamento da União Europeia como a conhecemos: um espaço de livre comércio, de soberania partilhada na maior parte das matérias, de livre circulação de pessoas, bens e dinheiro e em que uma maioria usa a mesma moeda.

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É que isto de ficar de fora não é a mesma coisa para todos. A ideia de recuperar toda a soberania pode ser entusiasmante. A perspectiva de deixar de obedecer a regras comuns na economia, na política orçamental e na regulação das mais variadas áreas pode cativar. A noção de enorme aumento dos graus de liberdade na execução de políticas e na condução do nosso destino pode fazer sonhar muita gente.

Mas antes de suspirarmos pela liberdade e autonomia é importante saber o que poderíamos e saberíamos fazer com elas.

Temos, enquanto regime democrático, uma curta experiência fora da União Europeia. Durou cerca de uma década e foi suficientemente atribulada para não deixar saudades: dois resgates do Fundo Monetário Internacional, inflação elevada, pobreza, uma economia subdesenvolvida, altamente regulamentada e estatizada e pouco ou nada competitiva, empresas obsoletas e atrasadas – por exemplo, o trabalho infantil era uma vergonhosa chaga em muitos dos nossos sectores tradicionais.

O progresso e a modernização chegaram, precisamente, com a adesão à então CEE e por força da necessidade de lá chegar.

Os dois períodos de maior crescimento económico e de convergência com a Europa que tivemos desde o início dos anos 70 estão inequivocamente associados a dois momentos do processo de integração. O primeiro, na última metade da década de 80 e início da de 90, foi a própria adesão à CEE, as reformas económicas e sociais que esse passo induziu e o investimento com a preciosa ajuda dos fundos comunitários.

O segundo, na segunda metade da década de 90, foi a caminhada para o euro, com metas impostas e vigiadas por Bruxelas, e a consequente credibilização do país que levou a uma quebra de taxas de juro que deu folga para tudo – até demais, como agora sabemos.

Penso que será consensual que fora da Europa o nosso destino teria sido muito pior, mesmo apesar da crise da última década, do resgate e da austeridade.

E hoje, após 30 anos de integração, estamos melhor preparados do que estávamos então para conseguirmos viver condignamente fora da União? Não me parece.

O grande falhanço da nossa vida democrática e da nossa integração está na incapacidade que temos demonstrado para reformar as nossas instituições e as nossas elites.

Todos os dias vamos tendo sinais disso. Quando discutimos a Caixa Geral de Depósitos ou puxamos o fio das ligações do Grupo Espírito Santo. Quando percebemos que os governantes continuam sempre mais preocupados com a próxima eleição do que com a próxima geração — duas excepções: o governo de Bloco Central liderado por Mário Soares em 1983-85 e o de Passos Coelho, que tiveram que lidar com um resgate e fazer o país recuperar a soberania financeira e económica à custa de medidas draconianas. Quando assistimos passivamente ao acumular de casos motivados pela porta giratória entre funções públicas e cargos privados. Quando convivemos com finanças partidárias e financiamentos de campanhas eleitorais que são uma mentira que gostamos de manter. Quando olhamos para a Justiça e a vemos lenta, burocrática e mais preocupada com as suas corporações do que em servir os cidadãos de forma digna. Quando continuamos sem resolver eficazmente a questão das incompatibilidades entre cargos públicos e privados, fazendo do Parlamento muitas vezes um centro de representação de interesses ilegítimos. Quando falhamos em dar estabilidade ao essencial da política fiscal ou das regras do ensino e programas curriculares. Quando mantemos à mesa do orçamento os mais diversos interesses parcelares, que vão de grupos económicos que preferem viver de rendas a corporações representadas por sindicatos.

Tudo isto tem um custo e constitui um lastro que trava o desenvolvimento, a inovação e a competitividade, prolongando a falta de exigência, a irresponsabilidade e a impunidade. Se temos fracas instituições e elites incompetentes os resultados nunca poderão ser bons. Deixados apenas entregues à nossa sorte mais facilmente veria o país a aproximar-se dos padrões populistas da América Latina do que da consistência e desenvolvimento do Norte da Europa.

A União Europeia tem muitos defeitos, tem ainda défices democráticos importantes e tem sido construída muito nas costas dos cidadãos. Tem algumas regras estúpidas e é burocrática. Mas como não somos o Reino Unido, com as suas instituições, competitividade e economia globalizada, a Europa é para nós o que a democracia era para Churchill: é o pior regime onde podemos estar se excluirmos todos os outros.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com