Por muita ciência que o Homem invente, por muita razão que oponha ao irracional dentro de si (de nós), em última instância é sempre o factor humano a preponderar. Somos, além de seres pensantes e críticos, criaturas conduzidas por pulsões, emoções e sentimentos, que são coisa distinta da emoção e comandam a nossa vida, a individual como a colectiva.

Está tudo muito bem explicado por António Damásio nos seus livros, explicação que ele estende à construção da sociedade humana: esta é o produto daquilo que se passa no cérebro de cada um de nós. A nossa vida social, escreveu o neurocientista, a própria organização social, são um reflexo, um produto inevitável da nossa organização básica afetiva.

É afinal relativamente intuitivo que a organização social decorra do que pensamos e sentimos (aliás, do que pensamos do que sentimos), ou pelo menos do que pensam, sentem e fazem homens e mulheres determinados, em momentos específicos da grande como da pequena História, dadas as circunstâncias concretas desses momentos. O factor humano, claro. Mas convém acrescentar que nenhum indivíduo que exista nesse concreto momento e circunstância é completamente alheio à construção dessa mesma organização. Ninguém o é, aliás, se acrescentarmos a esta reflexão a teoria do caos, cuja metáfora mais conhecida é a do “efeito borboleta”, que propõe que um evento qualquer, por pequeno que seja, tem consequências imprevisíveis. Tudo o que sucede, o que quer que seja, é o resultado de um número infindável de acções ligadas entre si por nexos de causalidade complexos, aparentemente aleatórios, inevitavelmente imprevisíveis.

Ora isso parece ser contraditório com o esforço do conhecimento, através da ciência, factor essencial para o desenvolvimento humano. Ao longo dos séculos, e com particular ênfase nos últimos 200 anos, o ser humano superou as múltiplas limitações que a sua condição lhe impõe, graças aos avanços científicos em praticamente todos os domínios: aprendeu a voar, a comunicar instantaneamente, a dominar a natureza; domou o átomo, estudou as estrelas e conheceu a existência de exo planetas com condições para albergar vida; e libertou-se dos grilhões impostos ao conhecimento através da rede global que permite o acesso imediato e gratuito à maior biblioteca jamais criada, por albergar em si, potencialmente, toda a informação existente.

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Nunca, em tempo algum, foi em teoria o mundo tão evoluído. A revolução agrícola permitiu à nossa espécie alimentar-se, a industrial produziu em série todo o tipo de máquinas e instrumentos para tornar a vida mais fácil e agradável, a tecnológica, em curso, colocou a informação e o conhecimento na palma da mão de cada ser humano. E o desenvolvimento da ciência, de todas as ciências ou para-ciências, permite agir sobre o tecido social e organizar melhor, cada vez melhor, a vida humana em sociedade: a economia tenta determinar as condições de repartição mais eficaz (e justa) dos recursos, o direito trata da regulação das relações entre os indivíduo (e com o Estado), a ciência política estuda as condições de optimização e legitimação do exercício do poder em benefício dos cidadãos, a matemática permite ao ser humano aproximar-se da realidade e projectar com precisão nanométrica o ponto de impacto de um objecto.

Num mundo assim perfeito, tudo deveria correr bem. Mas muita coisa, demasiada, corre mal. Guerras, genocídios até, terrorismo do mais soez que o planeta já conheceu, um aquecimento global que muitos negam enquanto se queixam que “já não há estações”, o aumento do desequilíbrio entre nações, entre regiões, entre pessoas, com cada vez menos a ter cada vez mais. E fome: morrem 30 mil crianças por dia de fome, repito, 30 mil crianças a menos por dia.

Num mundo interdependente, único, unido por uma world wide web, as aranhas que somos constroem no seu canto da rede protecções contra os da sua espécie, isolam-se, procuram agregar-se por cores, um velho atavismo, aranhas brancas a um canto, cada vez mais reduzido, nostálgicas da supremacia de antanho, as negras relegadas para centralidades degradadas, as amarelas em expansão, diligentes e ambiciosas, e outras cores ainda, perdidas, em busca do seu lugar próprio, que nunca encontrarão, porque o seu lugar é o lugar de todos e cada um. Já o devíamos saber, já o soubemos, passamos a vida a esquecer-nos das verdades mais simples.

E até os lugares de conversação pública, as redes de comunicação que deviam contribuir para melhorar a espécie, permitindo aos homens conviver livremente com quem quiserem, se vêm tornando lugares de ódio, de perseguição desbragada e anónima, de maledicência.

O que se passa, afinal?

Pois, tão simplesmente, o factor humano. As nossas mentes, os processos criativos, lógicos, as induções e as deduções, que emergem dos nossos sentimentos, que por sua vez são a interpretação das emoções mediada pelo eu (a auto-consciência), como ensina Damásio. O nosso processo intelectual liga essas emoções e sentimentos entre si e organiza-os. Somos humanos porque temos consciência do que sentimos e do que isso representa em termos de prazer ou desconforto, sejam esses sentimentos desejo, fome, sede, dor, medo, apetite… e é em resposta a eles que criamos coisas como a arte, a religião, a política, a música, a filosofia, a moral, a tecnologia. A ciência.

No fundo, é a emoção, raiz dos sentimentos, que está na base de todo o nosso edifício civilizacional. A forma como reagimos aos estímulos externos determina, no final, o tipo de mundo que construímos. E o mundo que construímos é, a um tempo, belo, magnífico, arrebatador, mas também horrível, deprimente, aterrador. Em cada realização humana, ao serviço dos sentimentos e das emoções, um mister Hyde esconde um dr. Jekyll.

Usamos a pólvora, virada para o céu, para criar o mais belo dos espectáculos, o fogo-de-artifício, símbolo universal da celebração; e usamo-la também dirigida uns contra os outros, na guerra, ao serviço de sentimentos como a cobiça, a inveja, a soberba, a sede de poder.

Morrem 30 mil crianças por dia de fome. 30 mil crianças por dia. 30 mil crianças. 30 mil. E nós, fazemos o quê? Vão-me provavelmente responder que não podemos fazer nada; ou o que é que isso interessa?; ou, ainda (e pior), perguntarão “e você o que faz?”. Respondo: escrevo artigos como este, sabendo que me vão perguntar justamente isso.

A nossa obrigação como pessoas é dominar as nossas emoções, controlar o factor humano e ajudar a corrigir os males do mundo, antes que o mal de novo triunfe (ainda mais). Obrigação que é minha, é vossa, é de todas as pessoas de boa vontade neste dealbar de 2017, no ano novo que queremos possa ser o princípio da superação dos males do passado.

É possível corrigir o que está mal. Ao contrário do que pensamos, ninguém está dispensado de contribuir para melhorar a sociedade, porque nela vive. No dia-a-dia, através do exemplo, escrevendo artigos, publicando nas páginas pessoais ou simplesmente dando a mão a alguém que precisa dela, no momento certo, com generosidade, todos podemos contribuir.

Se o bater de asas de uma borboleta pode desencadear um tufão a milhares de quilómetros de distância, imagine, caro leitor, o que um gesto de boa vontade seu pode fazer em prol da Humanidade.