Li há vários anos um livro onde se explicava que a destruição de estátuas de deuses pagãos pelos primeiros cristãos que se encontraram com poder para o fazer não se deveu ao facto de serem falsos deuses, mas sim por serem julgados deuses maléficos. Bem gostava de me lembrar que livro era, para o reler, mas até agora não consegui. De qualquer maneira, a coisa surpreendeu-me. Aparentemente, a primeira hipótese era a mais plausível. Mas, pensando melhor, talvez houvesse muita ignorância na suposição. Talvez a crença no poder efectivo das estátuas, na sua capacidade de agirem magicamente sobre nós, fosse um dado originário e irrecusável. A distinção primordial não seria a do verdadeiro e do falso, mas sim a do benéfico e do maléfico. Erramos quase sempre ao supor a racionalidade do verdadeiro e do falso como algo que se encontra como fundamento primeiro das nossas acções. Hoje não é muito diferente.

Lembrei-me disto, é claro, por causa do fervor contemporâneo em remover estátuas do passado. Não tenho seguido o fenómeno de muito perto e por isso os meus exemplos são limitados, mas suficientes para ter uma vaga ideia do que se passa. No ano passado, houve um movimento em Oxford para remover a estátua de Cecil Rhodes no Oriel College. Porquê? Porque a simples existência da estátua, defendiam os promotores da remoção, atentatava contra o princípio da “inclusividade”. Rhodes, que morreu em 1902, era certamente racista e talvez o exemplo mais acabado do imperialismo: “se pudesse, anexava as estrelas”, parece que disse. Foi igualmente autor de um principesco legado que actualmente beneficia sobretudo os estudantes estrangeiros que querem ir para Oxford. Mas para vária gente a presença da estátua ali significa uma ameaça palpável à dignidade da humanidade. Um miasma maléfico desprende-se dela. É preciso eliminá-la.

Este ano foi decidida a remoção da estátua equestre de Robert E. Lee, o principal general sudista na guerra da secessão, do actual Emancipation Park da infelizmente muito falada cidade de Charlottesville, nos Estados Unidos. Robert E. Lee morreu em 1870. Lutou sem dúvida, entre outras coisas, contra a abolição da escravatura, o que não o torna particularmente simpático aos nossos olhos. Mas a sua figura, e mais genericament a imagem do Sul da época, foram matéria – e mais do que matéria: elemento e fonte inspiradora – de uma parte substancial da literatura, do cinema, e até de alguma música, americana. Dispenso-me a enumeração de algumas dessas grandes obras. Qualquer pulga da areia dada ao ocasional cepticismo as pode encontrar mencionadas na net. No entanto, a estátua de Robert E. Lee parece aos olhos de muitos condensar em si o mal, um mal que se arrisca a irradiar pelo universo inteiro, como um inominável e maléfico eflúvio. Solução? Acabar com ela.

Também este ano, em Sidney, na Austrália, a estátua do Capitão Cook foi vandalizada e alguns pedem a sua remoção. James Cook, o explorador e navegador inglês que fez conhecer à Europa muito do Pacífico, a começar pela Austrália, e que foi assassinado no Havaí, morreu em 1789. Sem dúvida que, de acordo com os costumes da época, não era um feroz adepto da “inclusividade” e que uma conversa dele com a nossa fabulosa Catarina Martins revelaria muitas atitudes que me forçariam pessoalmente a manifestar o meu acordo com a Catarina em questão. Mas convém lembrar que as suas descobertas e trabalhos de cartografia, excutados ao longo das suas três grandes viagens, forneceram a base do nosso conhecimento daqueles lugares e da vida dos indígenas. Além disso, o relato das suas viagens, para quem apreciar o muito apreciável género literário, lê-se com prazer e benefício. A sua estátua em Sidney é no entanto vista por alguns como um atentado aos direitos dos povos do mundo. Urge acabar com ela.

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Em Portugal somos mais pacatos. Os arbustos com os brasões da Praça do Império sofreram, é verdade, a investida vitoriosa de uma das mais caricatas e daninhas personagens da política portuguesa, José Sá Fernandes, o do Bloco de Esquerda e, depois, de António Costa. Mas, com grande prudência vegetariana, algo o limitou aos arbustos e não se atacou, por exemplo, ao Marquês de Pombal, como este, na sua lógica, sem dúvida merecia. Limitou-se a lixar a vida dos lisboetas e o dinheiro dos portugueses com a história do túnel, corolário talvez provisório de uma inexcedível carreira consagrada ao bem público na sua singular dimensão de auto-promoção. Em 2007, o Bloco dizia que “O Zé faz falta”. Bom, sem dúvida que o Zé faz imensa falta ao Zé. Mas, repito, ficou-se pelos arbustos e nada mais. Portugal é pacato e tendencialmente vegetal, como diz quase um poema de O’Neill. Em 1984, dava eu aulas num liceu em Vila Pouca de Aguiar e ia todas as semanas ter explicações de grego e latim no seminário de Vila Real com um velho professor que, aos oitenta anos, se confessava todos os dias, o que na altura me pareceu razão para optimismo em relação ao futuro. À entrada do seminário descobri uma tarde, muito escondido por detrás de uma plantinha muito viçosa, um busto do Dr. Salazar. Brandos costumes, pelo menos às vezes.

O meu ponto em relação às estátuas não é que a discussão seja em si disparatada. Há certamente casos em que ela faz sentido, nomeadamente casos próximos de nós no tempo, e outros que nem discussão merecem. Para dar um exemplo que vale por todos: Hitler e os nazis. O meu ponto é que, nos exemplos que dei, a motivação da sua remoção ou destruição parece relevar de uma crença primitiva na eficácia mágica e maligna das estátuas, ao modo das supostas crenças dos cristãos de que falei no início. Como se, abolindo a representação, o símbolo, os aspectos mais negativos do objecto representado fossem esconjurados, como quem espeta pregos em figurinhas para produzir efeitos no real. Freud chamou a isto crença na omnipotência do pensamento e é bem disso que se trata. Tal crença supõe a absoluta abolição da distância histórica relativamente às figuras do passado: elas passam a simbolizar um mal intemporal que em nada se distingue ou distancia do nosso presente. Omitindo questões de valor estético, a atitude é afim da dos talibãs que destruíram os budas de Bamiyan ou da do Estado Islâmico em Palmira e noutros lugares. Exagero meu? Em parte sim: o que se perde em descoberta das criações da humanidade é infinitamente menor no caso das estátuas que referi. Em parte não: o substrato da crença é em larga medida o mesmo.

Sobretudo, no caso das estátuas mencionadas, trata-se de um erro. Elas estão ali também para nos lembrar o passado do que fomos e para medirmos continuidades e descontinuidades, para reflectirmos na distância que nos separa das crenças mais ou menos colectivas de outros tempos. Elas não são apenas “lugares de memória”. Podem, e devem ser, lugares de crítica e reflexão mais ou menos consciente. Dito de outra maneira, de incitamento à objectividade: aquela que encontramos nos Persas de Ésquilo ou nos filmes de Clint Eastwood sobre as batalhas entre americanos e japoneses na segunda guerra mundial. Poderá esta busca da objectividade ferir sentimentos? É claro que pode. Os sentimentos, por muito desagradável que seja, existem para por vezes serem feridos. A começar pelos nossos em relação às partes doentes do nosso passado. Aprende-se através do sofrimento, como dizia justamente Ésquilo. Barack Obama, quando, mal chegado à Casa Branca, mandou retirar da Sala Oval um busto de Churchill oferecido, creio, por Tony Blair a George W. Bush, fê-lo porque o Churchill imperialista ofendia aos seus olhos a memória dos quenianos de que descendia. Mas, muito exactamente, e isso resume o que tenho vindo a dizer, Churchill não foi unicamente imperialista. Conduziu, quase sozinho, a resistência na Europa à barbárie nazi. E isso foi um feito incalculável, muito mais decisivo do que o imperialismo que havia partilhado com a quase totalidade dos contemporâneos. Tanto quanto tenho doutrina da matéria, o gesto de Obama foi, no plano simbólico, infeliz. E, de resto, muito ilustrativo de vários aspectos da sua presidência.

Em 1964, o filósofo marxista “heterodoxo” Herbert Marcuse publicou um livro célebre, O homem unidimensional, onde fazia a crítica do efeito uniformizador do capitalismo, daquilo que, na linguagem hegeliano-marxista da altura, se chamava a reificação, a transformação tendencial dos seres humanos em objectos e a consequente perda da capacidade humana de conceber a possibilidade de diferentes níveis da existência e de criação humana. No presente, a ameaça da “unidimensionalidade” parece vir mais, muito mais, das tentativas de eliminar qualquer distância em relação às imagens e símbolos do passado e de nelas ver encarnações intemporais de uma dimensão maléfica que é preciso destruir para todo o sempre. Como se só o presente, um presente sem espessura temporal nem reflexão, existisse. Basta ler aqui e ali a prosa que se produz neste sentido para se perceber que por detrás de uma encenada sofisticação se encontra a mais fanática regressão à unidimensionalidade do pensamento e à crença mágica primitiva.