No documento de análise ao Orçamento de Estado (OE) para 2016 que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) divulgou (Março de 2016) pode ler-se que uma das “duas grandes prioridades” (sic) na proposta do OE é “Reforçar o investimento em ciência e tecnologia…”, sendo “reforço” talvez a palavra mais frequentemente usada no resto do documento, a que eu poupo o leitor. A realidade, todavia, veio a revelar o contrário: os dados oficiais da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) mostram que o orçamento realizado pela FCT em 2016 (367M€) foi inferior ao do ano anterior (372M€), este já em baixa acentuada em relação ao de 2014 (393M€), longe dos máximos registados em 2013 (424M€) e 2010 (469M€). É de salientar a desculpa da FCT ao tentar justificar esta quebra “A redução de execução financeira verificada nos últimos anos resulta da diminuição na quantidade e financiamento em execução…” Como se, em dois anos, não houvesse tempo para abrir novos concursos e distribuir mais dinheiro! Ou seja, o tal “reforço” era propaganda política.

Eu estava avisado, mas não imaginava que o logro fosse tão claro. Ouvia com frequência queixas dos investigadores sem financiamento da FCT para projectos (o-pão-nosso-de-cada-dia dos grupos de investigação): desde que o actual Governo tomou posse não houve um cêntimo distribuido para novos projectos! “Assim não podemos sobreviver”, diziam-me uns; de outros ouvia tristes notícias: grupos de investigação que fechavam, investigadores que se iam embora. Todavia, sempre pensei que era uma questão da política de distribuição: o tal “reforço” estava certamente a ir para outras coisas! Ora, pelos vistos não; o dinheiro simplesmente não saiu do orçamento prometido e o “reforço” não passou de um fantasma.

Mas há mais: duas das medidas mais estruturantes para o desenvolvimento da C&T em Portugal foram simplesmente descontinuadas pelo Governo actual, sem oferecer soluções alternativas e, dir-se-ia, por pura politiquice provinciana. Trata-se do programa Investigador-FCT (InvFCT) e do financiamento de Programas Doutorais, ambos a funcionar por concursos abertos e transparentes, onde o julgamento era “apenas” sobre o mérito.

Face ao mar-de-rosas na C&T que nos pintam o Governo e os jornais, houve certamente quem estranhasse a manifestação pública de “Luto pela Ciência”, escrita nas T-shirts de alguns dos nossos melhores investigadores (mas já lá vamos), que veio a público precisamente em plena Festa da Ciência. Surpreendente, por outro lado, o número de funambulismo do Ministro, que no mesmo cenário, reafirmou às TVs que “a luta pela ciência, fazemo-la todos os dias” (no caso de alguém não ter conseguido ler a palavra exacta nas T-shirts, digo eu). Estes investigadores carpiam a morte do programa Investigador-FCT (InvFCT) que, tendo sido lançado pelo anterior Governo, “tinha” por força que ser encerrado, por melhores resultados que estivesse a ter.

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Nos países mais desenvolvidos, existem carreiras públicas de investigação independentes das Universidades: os melhores entram, escolhem onde querem trabalhar (muitas vezes nas Universidades) e não têm outras obrigações, nomeadamente de ensino, senão fazer investigação. Quando foi ministro, Mariano Gago lançou dois “Programas Ciência” consecutivos e idênticos: através da FCT, o Governo distribuía pelas instituições de investigação, “lugares” de investigador que eram preenchidos à luz do critério exclusivo da instituição a que “pertenciam”. Sem surpresas, muitos destes novos lugares apenas reforçaram a endogamia e representaram um financiamento indirecto e discricionário das instituições, na medida em que o número de lugares atribuídos era de decisão superior, sem concurso. Não havia perspectiva de carreira (futuro), nem diferenciação: todos os contratos dos “Ciência” eram iguais e por 5 anos não-renováveis.

O anterior executivo arrepiou caminho e lançou um novo programa, certamente muito superior aos “Ciência”, tanto para a C&T nacional, como para os investigadores eles próprios (o que vem a dar na mesma coisa). Todos esperámos se tornaria definitivo. Os InvFCT eram recrutados por mérito, após concurso anual internacional e aberto a todos, para 3 categorias de senioridade. Ou seja, os melhores eram os melhores mesmo e não só os melhores de uma dada instituição “dona” dos lugares. Depois, os InvFCT eram “donos” do seu lugar e escolhiam para onde iam trabalhar, podendo mesmo migrar entre instituições. Enfim, ao fim de cada período de 5 anos, os InvFCT podiam concorrer e competitivamente ganhar um novo período de 5 anos na mesma categoria ou numa superior. Uma das últimas recomendações ao Governo do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia – entretanto desaparecido nas politiquices, fora de celebrar contratos “definitivos” com os InvFCT que tivessem passado 3 vezes no crivo dos concursos aos 5 anos.

Como era de esperar, os InvFCT rapidamente se tornaram a marca do que melhor existe no país, tendo atraído muitos investigadores do estrangeiro, portugueses e não só (nos 3 primeiros anos de concurso, cerca de 20% dos investigadores seleccionados para integrar o programa estavam fora no país no momento do recrutamento). Foram precisamente estes Inv-FCT que se vestiram de luto na festa da ciência. Tento acabado com o programa Inv-FCT, o actual MCTES não tem alternativa a oferecer aos melhores no país. Alguns à esquerda, aplaudem, que isto de “meritocracia” foi uma coisa “passageira” e agora todos temos direito (nem que seja por antiguidade – que violência face às gerações mais jovens) a lugares no quadro! Mas qual quadro?

Uma das razões que levaram ao lançamento dos Programas Gulbenkian de Doutoramento em 1993 fora o facto, surpreendente para mim, que em Portugal, milhares de Bolsas de Doutoramento (BD) eram atribuídas individualmente, por decisão de uma meia dúzia de “peritos nacionais” reunidos em Lisboa. Deixando de lado os certamente frequentes conflitos de interesse numa comunidade tão pequena, esta prática era uma aberração, julgando os candidatos não pelas suas capacidades, mas exclusivamente sobre a “nota de curso” e o “supervisor” de Tese. O projecto de investigação fazia parte do concurso, mas naturalmente, um jovem que quer iniciar um doutoramento não pode ter ideia do que quer fazer e de como fazê-lo, submetendo a concurso um projecto que lhe passou o supervisor… e passando os quatro anos seguintes a trabalhar de técnico para o tal supervisor (o nome diz tudo).

A surpresa também tinha razão no facto que em todos os países onde eu trabalhara, as Bolsas de Doutoramento eram atribuídas a Programas ou a instituições, que eram regularmente avaliadas sobre as suas escolhas de estudantes e capacidades formativas. Neste outro sistema, os responsáveis dos programas falam (longamente) com os candidatos e estão certamente em melhores condições de separar o trigo do joio, do que uns “peritos” que nem os vêem. Os programas doutorais iniciais [em Biomedicina, no Instituto Gulbenkian (PGDBM) e nas Universidades do Porto (GABBA) e de Coimbra (BEB)] recebiam anualmente do Ministério um “pacote” de Bolsas que atribuíam aos alunos que seleccionavam por concurso aberto. Todavia, estes programas (e vários outros que se lhes seguiram) funcionaram durante duas décadas por “acordos caso-a-caso” com o Ministério/FCT, sem que o “novo” sistema fosse implementado e aberto à competição dos melhores. Tal acabou por ser feito pelo executivo anterior e 96 novos Programas Doutorais, seleccionados entre 450 candidaturas, passaram a funcionar em várias Universidades portuguesas.

Mas, oh provincianismo politiqueiro, também aqui, esta medida enfermava de ter sido tomada pelo “governo errado” e o Ministério actual decidiu que era para acabar imediatamente! E lá vai outra vez distribuir BDs “à l’ancienne”. (Entretanto, a FCT já veio anunciar a manutenção dos Programas Doutorais existentes por mais um ano… e vamos a ver o que isto vai dar.)

Em resumo, os tempos são maus e difíceis para a C&T em Portugal. Os melhores investigadores em todas as áreas não têm perpectivas de se manterem em Portugal, sem lugares nem carreira, sem dinheiro para projectos. Os melhores alunos, por sua vez, também poderão emigrar, pois há hoje Programas Doutorais internacionais abertos, onde entra por mérito, em todos os outros países europeus. Os que por cá ficam, estarão mais à vontade, protegidos da competição.

Ex-director do Instituto Gulbenkian de Ciência 1998-2012, presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa