Toda a gente arranjou maneira de se zangar com o Orçamento. A acusação mais curiosa foi esta: afinal, depois de tanta “austeridade” e de tanto “neo-liberalismo”, nada mudou. Quando muito, algumas tendências estão mais moderadas. Falta de zelo? Irresponsabilidade, como insinuam aqueles que agora se lembram de que “vamos para a parede”? Não. A razão é mais simples: “nada mudou”, porque nada, até agora, teve de mudar.

Em Portugal, o governo, como seus antecessores, encontrou sempre mais receita fiscal, e espera este ano encontrar ainda mais. E na Europa, por entre muita tensão franco-alemã, o BCE não deixou faltar dinheiro. Hans Werner Sinn explicou isso num artigo que, pelos vistos, toda a gente em Portugal teve o cuidado de não ler: a UE restabeleceu, por via pública, a circulação de capitais outrora efectuada por via privada entre o norte e o sul. Para que serviram os biliões de euros gerados pelo BCE? Entre outras coisas, para os países do sul continuarem a financiar défice atrás de défice, com juros cada vez mais baixos. Há neste momento outra bolha de crédito, que o BCE se prepara para insuflar ainda mais com o seu novo esquema de financiamento ao sector privado. A “deflação” deixa os prelos do BCE funcionarem sem descanso. Não há crescimento económico, mas há muito dinheiro barato a andar de um lado para o outro.

Por que razão, nestas circunstâncias, teria o governo cortado a despesa pública? Para ressuscitar as manifestações, as aulas magnas, as “grândoladas” e os acórdãos do Tribunal Constitucional de que, entretanto, já ninguém se lembra? O grande ponto é este: neste momento, graças ao apoio da troika e agora do BCE, os custos de mudar continuam a ser maiores do que os custos de adiar as mudanças. Imaginem isto: se o governo já é denunciado como “neo-liberal” por nos deixar uma despesa pública corrente igual, em termos de PIB, à de 2010, o que diríamos e o que faríamos se a tivesse diminuído? Ou se tivesse obtido reduções de salários e de pensões, não através de cortes temporários, mas da reformulação das estruturas? A verdade é que não foi necessário (e só por isso não foi “possível”).

E depois, há isto, que o véu mitológico da austeridade esconde pudicamente: no geral, vivemos bastante bem. O crescimento económico é baixo ou nulo, o desemprego juvenil é alto, mas tudo o mais é excelente, se comparado com o que era no passado, ou com o que ainda é no resto do mundo. Nunca vivemos tanto tempo e com tanta saúde, e por alguma razão será. Mais: os nossos salários reais desceram, mas, como vários economistas insistem em dizer sem nós ouvirmos, são ainda muito elevados para a nossa produtividade média. Mudar? Para quê?

Este orçamento não é, como o país dos comentários quer acreditar, o resultado das limitações de Passos Coelho. É, pelo contrário, o resultado dos recursos de Portugal e da Europa, que, pelos vistos, ainda não chegaram aos limites. Sem isso, já estaríamos no lazareto da bancarrota, ao lado da Argentina. Assim, quase parece que o nosso destino é o Japão: uma economia que não cresce, mas que tem dinheiro.

Houve gente que, a propósito de tudo isto, se lembrou do velho “monstro” que o professor Cavaco Silva, nos seus tempos de naturalista, identificou um dia no “pântano” pré-histórico de António Guterres. Sim, o nosso monstro está vivo e muito bem de saúde. E sabem porquê? Porque nunca lhe faltou almoço. Não tenham ilusões: o monstro só vai extinguir-se quando não houver que comer, isto é, quando o imposto em Portugal deixar de render e quando o BCE, terminada a “deflação”, não puder imprimir mais euros. Mas tudo isto quer dizer uma coisa: as mudanças que não fizemos até agora por opção, vão um dia acontecer por necessidade. Só que talvez já não sejam reformas, graduais e planeadas, mas revoluções, súbitas e caóticas.

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