Quem tem sido o melhor jogador da selecção nestes quatro jogos? Képler Laveran Lima Ferreira, conhecido pelas autoridades como Pepe, português de Maceió, psicopata internacional e central de luxo. Daqui a muitos anos, quando Portugal tiver fechado as portas e não restar ninguém com a nacionalidade portuguesa, Pepe continuará a varrer o seu raio de acção, de Sagres a Caminha passando pelas Regiões Autónomas, e a limpar todas as bolas cruzadas para a Gardunha. Quando dele se diz que é “imperial” tanto pode ser pela forma autoritária de se impor aos adversários como em referência aos imperadores loucos que incendiavam cidades, decapitavam as mães e copulavam com as irmãs (geralmente com os lascivos nomes de Calpúrnia ou Agripina). Pepe pode ser Júlio César durante 89 minutos e Nero no último segundo, a tocar lira enquanto aplica melómanos pontapés na cabeça do inimigo.

Dos últimos três cidadãos brasileiros naturalizados portugueses que representaram a selecção, dois deles – Deco e Liedson – fizeram-no quando perceberam que dificilmente seriam chamados para o escrete (calculo que Deco se tenha arrependido da decisão). Pepe foi diferente: escolheu cedo o país que queria representar, bateu no peito, fez juras públicas de amor à nação, até deu um jeitinho no sotaque, aportuguesando-o, embora não muito, criando aquela dicção pessoal, intransmissível, meio sinistra e apátrida, um pouco como Joaquim de Almeida a fazer de italiano num filme de Hollywood.

Eu nunca percebi muito bem a devoção fervorosa de Pepe por um país para onde veio com dezoito anos. Sempre que o via a cantar o hino com uma fúria que nem Alfredo Keil e Lopes de Mendonça terão imaginado, e a correr atrás dos adversários como se tivessem roubado a Custódia de Belém, lembrava-me um stalker, aqueles tipos que, nos filmes, conhecem uma rapariga e no dia seguinte revelam já saber tudo sobre ela (o filme preferido, o livro preferido, o código do cartão multibanco, etc.) e oferecem-se para espancar, assassinar e desmembrar ex-namorados, vizinhos antipáticos e pessoas que lhe passaram à frente na fila do supermercado. Pela primeira vez na história da humanidade, esta é a minha impressão, um país foi vítima de um stalker.

Os anos passaram e o certo é que Pepe se tornou parte inquestionável da paisagem futebolística nacional. Ainda assim, é difícil desculpar-lhe aqueles surtos psicóticos em que olha para os adversários e vê uma legião de zombies famintos ou, pior do que isso, uma brigada de agentes do SEF ansiosos por lhe retirar a nacionalidade portuguesa. Esse equilíbrio periclitante em que Pepe vive no coração do adepto comum faz com que os seus extraordinários desempenhos sejam obscurecidos por aquilo que não aconteceu mas poderia perfeitamente ter acontecido. É como se Pepe arrastasse com ele uma bagagem de hipotéticas malfeitorias, de sementes de simulações, de agressões em estado embrionário, e que esse peso obrigatoriamente tivesse de ser descontado da nota final. Se ignorarmos esse lastro de potenciais ignomínias seremos capazes de ver o óbvio (sempre o mais difícil de se conseguir): Képler Laveran – o odiável Pepe – tem sido um monstro em França. Sagrado.

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Já agora

Lembram-se do Gil, não a mascote da Expo 98, mas a mascote, perdão, o avançado da selecção que ganhou o mundial de juniores em 91? Se não se lembram do Gil também não se lembram de Soul Glo, aquele produto para cabelos afro-americanos que era um elemento importantíssimo no enredo de “Um Príncipe em Nova Iorque”. Quem usava Soul-Glo era o rival de Eddie Murphy, um jovem actor chamado Eric La Salle que, anos depois e já sem Soul-Glo à vista, foi estrela na série “Serviço de Urgência”. O cabelo de Gil parecia um anúncio ao Soul Glo e é por razões capilares, mais do que pelo talento futebolístico, que me lembro dele. Anos depois do mundial, uma equipa da RTP descobriu-o na Suíça, onde Gil (na altura promovido a Gil Gomes) passara a empregar a sua apurada técnica na lavagem de pratos. (A propósito, o que explicará a obsessão colectiva por reportagens do género “o que é feito de si”? Que ponto sensível da memória e das emoções é tocado pelo reaparecimento de uma figura esquecida? Diria que essa preferência exprime uma nostalgia da ressurreição, a ideia de que nem todos aqueles de que nos esquecemos morreram, que podem regressar desse outro mundo dos mortos que é o esquecimento. É uma espécie de necrofilia suave.)

Bem, voltando ao assunto principal. Há tempos, Gil reapareceu na condição de pai de um rapaz tido como uma das grandes promessas do futebol inglês, Angel Gomes, 15 anos, estrela dos escalões jovens do Manchester United. Contudo, não é de Angel que quero falar. Li no jornal A Bola uma entrevista ao pai. Acredita ter tido alguma influência no trajecto do filho pois, segundo ele, sempre lhe ofereceu bolas e o incentivou a praticar futebol. Além disso, levava-o habitualmente aos jogos do irmão mais velho, de seu nome – e foi isto que me atraiu na história – Rico Amor Gomes. Gil não entrou para a galeria das grandes figuras do futebol e não sabemos se o filho Angel, sobre o qual já recai uma tão grande responsabilidade, será tudo o que pai não chegou a ser. Do que eu não tenho dúvidas é que há naquela família um nome que tem de ser aproveitado, seja pelo futebol ou pela literatura. Rico Amor Gomes, meus amigos, é remate de letra.