Na Holanda, nos últimos dias, houve quem pedisse o envio de tropas da NATO para o leste da Ucrânia. Percebe-se o desespero: depois de abaterem o avião, os separatistas russos pilharam os despojos e apoderam-se dos cadáveres, que usaram para se imporem como interlocutores internacionais. Como é óbvio, nunca houve a mínima chance de os líderes ocidentais fazerem mais do que produzir algumas citações para a comunicação social.

A questão, agora, é: o que aprenderam as demais rebeliões em curso com o caso do voo MH17? Quando é que outros bandos em guerra vão instalar baterias de mísseis para ameaçar voos internacionais e assim chantagearem o Ocidente? E que farão então os ocidentais? Despacharemos finalmente tropas para parar os mísseis, como Israel faz em Gaza?

Era suposto as “intervenções externas” serem uma mania que perdemos com George Bush. Contra Bush, convencemo-nos de que bastaria não fazermos nada, para ninguém nos maçar. Nos últimos anos, admitimos tudo: que tínhamos sido “imperialistas” e que não devemos exportar os nossos valores, ao contrário da nossa fast food.

Recordamos agora com indignação aqueles que, no passado, julgaram ter a missão de levar a “verdade” ou o “progresso” ao mundo, ou que acreditaram que a segurança das nossas democracias dependia da democratização do planeta. Deixámos tudo isso para trás. Vivemos em sociedades envelhecidas e endividadas. Do resto da humanidade, não queremos mais do que matérias primas, mão de obra barata, e capitais em fuga. Dispensamos incómodos.

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A actual irritação com Israel vem provavelmente daí. Não são tanto as crianças de Gaza, porque as crianças da Síria, que Assad massacra com armas químicas, nunca justificaram tantas poses indignadas. É o facto de ser Israel, e de Israel ter a ver connosco, e assim de algum modo nos comprometer, como constantemente lembram os fundamentalismos que parasitam a diáspora muçulmana no Ocidente. Se não fosse Israel, Gaza justificaria a distração que nos merece o Iraque, agora que os americanos já lá não estão.

Sábado passado, em dois lugares da região de Paris, os radicais islâmicos aproveitaram manifestações anti-israelitas para lançar um pogrom à antiga, ao grito de “morte aos judeus!” Mas acontece isto: quando não é Israel em Gaza, é a equipa de futebol da Argélia que ganha um jogo e põe milhares de jovens franceses de origem argelina a festejar com incêndios e ataques à polícia. O mundo não nos larga sem Bush, e não nos largaria sem Israel.

Descarregado o “fardo do homem branco”, vivemos a última ilusão do imperialismo: julgámos que tudo ainda dependia de nós, e que se portanto deixássemos o mundo em paz, o mundo nos deixaria também em paz a nós. Não percebemos que no mundo de hoje, não há insularidades arcádicas: que quem apanha um avião em Amsterdão com destino a Kuala-Lumpur pode morrer numa guerra no leste da Ucrânia; que quando o futebol magrebino vence na América Latina, é possível que um bairro de Paris fique em chamas.

Perante um mundo que, depois da nossa retirada, insiste em chegar até nós, envolvendo-nos nos seus conflitos, a resposta ocidental é a que deu Barack Obama com o discurso de West Point, de 28 de Maio: nem isolacionismo, nem intervencionismo. Obama pertence a uma geração de líderes ocidentais que se habituou a iludir os problemas através da simples eliminação das soluções “extremas”.

Nos últimos anos, julgámos que nos tínhamos tornado bons. Mas o mundo prepara-se para testar a nossa bondade. Mr. Kurz, no romance de Conrad, não resistiu. E a nós, que nos vai fazer o “horror”?