A comunicação social, de repente, acordou para a questão dos recasados na Igreja e a possibilidade do seu acesso ou não aos sacramentos. De facto, esta questão já vem de longe e já escrevi aqui várias vezes sobre o assunto. Mas porquê agora? Porque o Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, publicou na página do Patriarcado uma nota acerca deste assunto. Mas porque é que uma nota na página do Patriarcado suscita tanta curiosidade, para não dizer máxima polarização e animosidade nas redes sociais, dentro e fora da Igreja? (Vejam-se os comentários às notícias) Porque, enviesadamente, para não variar, os jornalistas puseram os óculos do sexo e veem tudo pelo mesmo ângulo.

Claro que, depois de um artigo publicado no Público e, em seguida, aqui no Observador e dos canais televisivos abrirem com títulos bombásticos acerca da nota do Patriarcado, ninguém vai ler a dita nota. Mas todos comentam e conjeturam sobre a mesma a partir, primeiro, da opinião exposta nos artigos e, depois, a partir dos comentários mesmos que ganham vida própria e voam livremente uns sobre os outros esgrimindo-se em batalhas mortíferas. Tudo em nome da sã doutrina e do amor ao Evangelho e a Nosso Senhor Jesus Cristo, claro!

Na Exortação Apostólica Amoris laetitia, o Papa Francisco propõe a possibilidade de um caminho de discernimento que considere a possibilidade de acesso aos sacramentos por parte de pessoas recasadas. No seguimento desta Exortação, muitas dioceses pelo mundo têm vindo a pôr os meios para que esse processo seja possível. Em Portugal, depois da Arquidiocese de Braga ter sido a primeira a dar esse passo oficialmente, outros bispos locais iniciaram também esse caminho. Chegou agora a vez de Lisboa o fazer. Ao fazê-lo, D. Manuel Clemente é preso por ter cão e preso por não ter.

Nas redes sociais, grupos pequenos mas ruidosos de católicos atacam o “progressismo” do Bispo de Lisboa como, aliás, não têm deixado de atacar o “herético” Papa Francisco, sempre que podem. Tempos interessantes estes em que alinhar com a posição do Papa e dos bispos é sinónimo de heresia. Quem vive em segunda união é adúltero; adultério é pecado mortal; uma pessoa em pecado mortal não deve aceder à Eucaristia. Tudo o mais que seja dito é heresia. Não requer interpretações, não se atém às circunstâncias pessoais nem há nunca a possibilidade da prática pastoral ser alterada. Interessante também que quem professa esta lógica, professava uma obediência “sem espinhas” ao Papa e aos bispos locais. Pelo menos até ao pontificado do Papa Bento XVI. Francisco não vale essa atitude. Quando o Papa, a grande maioria dos bispos e dos católicos espalhados pelo mundo têm um mesmo sentir sobre um determinado assunto, é de alguma presunção continuar a considerar-se católico e afirmar-se defensor da verdade. A humildade é a verdade, dizia Sta. Teresa de Ávila. Um pingo mais de humildade talvez abrisse à possibilidade de, pelo menos, se porem em questão. O Patriarca de Lisboa, na sua missão de bispo local, declarou-se em comunhão com o Papa e com a Igreja universal. E, lendo a nota pastoral, vê-se que o fez de modo prudente, tentando respeitar as diferentes sensibilidades que sabe coexistirem na sua diocese. Mas, para alguns, esta atitude é condenavelmente progressista. À fogueira!

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Para o resto das pessoas, que tiveram acesso a esta nota exclusivamente através das notícias nacionais, D. Manuel Clemente é exposto a um idealismo ridículo porque propõe que os “Católicos recasados devem ser aconselhados a abster-se de ter relações sexuais” (título do Público). Ridícula é a notícia!

O texto apresentado na página do Patriarcado ocupa mais de quatro páginas, é constituído por cinco densos números, cada um com vários parágrafos e/ou alíneas, e por um apêndice com três profundas citações papais. Perante esta Nota Pastoral, as notícias resolveram, não apenas focar-se, mas resumir-se a meia frase de meia dúzia de palavras: “pode-se propor o compromisso em viver em continência.”

Ora, esta frase, hoje vituperada pelos jornais, é uma citação da ontem tão louvada e aberta Exortação Apostólica Amoris laetitia na qual o Papa abre a possibilidade de acesso aos sacramentos por parte de recasados. É verdade que a Amoris laetitia logo alerta para os perigos e irrealismos da proposta de viverem em continência. Mas a Nota Pastoral do Patriarca de Lisboa continua a mesma alínea precisamente afirmando que a Exortação “não ignora as dificuldades desta opção”. E a mesma alínea prossegue com todas as outras possibilidades: “é igualmente possível um caminho de discernimento (…) a Amoris laetitia abre a possibilidade de acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia”. E resumindo, termina o Cardeal Patriarca:

Com tudo isto presente, indico algumas alíneas operativas: a) Acompanhar e integrar as pessoas na vida comunitária, na sequência das exortações apostólicas pós-sinodais Familiaris Consortio, 84, Sacramentum Caritatis, 29 e Amoris Laetitia, 299 (cf. apêndice). b) Verificar atentamente a especificidade de cada caso. c) Não omitir a apresentação ao tribunal diocesano, quando haja dúvida sobre a validade do matrimónio. d) Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação. e) Atender às circunstâncias excecionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados. f) Continuar o discernimento, adequando sempre mais a prática ao ideal matrimonial cristão e à maior coerência sacramental.

Como se vê, as grandes paragonas, afinal, reduzem-se a uma possibilidade entre muitas. Além da própria Amoris laetitia, o documento dos bispos de Buenos Aires que serviu de base para os processos de muitas dioceses (já que o Papa afirmou que aquela era a interpretação correta do pensamento da Amoris laetitia), contém a mesma proposta. O documento da diocese de Braga, que há um mês caiu nas graças dos jornalistas, contém a mesma possibilidade. Não conheço, obviamente, todos os documentos das Igrejas locais, mas admito a possibilidade desta opção surgir na totalidade dos mesmos. Porque será que outros documentos que, embora incluindo precisamente esta mesma opção dentro das várias possibilidades, foram bem aceites pela comunicação social e público em geral e esta Nota Pastoral não foi? Por uma única razão: a primeira notícia a sair sobre ela tinha uma leitura viciada e míope. As outras seguiram-na.

Não vou aqui discutir a viabilidade, o realismo ou o idealismo, ou até o que para muitos possa parecer ridículo. Apenas registo três aspetos: primeiro, o Cardeal Patriarca de Lisboa atuou como pastor da sua diocese ao publicar uma nota que claramente tenta incluir as mais diversas sensibilidades, assumindo a sua fidelidade ao Papa e aos fiéis que lhe são espiritualmente confiados; segundo, confirma-se que um grupo acérrimo de católicos não cede, mesmo contra o Papa, os bispos e os restantes católicos do mundo inteiro; finalmente, o papel essencial da comunicação social – que devia ser acompanhado pelo sentido de responsabilidade e de verdadeira busca da verdade – que, para o bem e para o mal, se confirma que tem o poder de formar opinião a partir da apresentação reta ou distorcida da realidade.

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