A legitimidade política do governo de António Costa depende de uma dupla coligação. A aliança entre as esquerdas, a chamada geringonça, e uma espécie de bloco central entre o PM e o Presidente da República. Costa valoriza muito a segunda porque sabe que a geringonça sozinha é insuficiente para garantir a sua legitimidade política aos olhos dos portugueses. O trágico dia 15 de Outubro abalou seriamente a aliança entre São Bento e Belém. Foi muito mais do que uma mera discordância, como Carlos César quis convencer os portugueses.

A palavra chave para se entender o afastamento irremediável entre Marcelo e Costa é confiança. Obviamente que Belém e São Bento não entraram num clima de conflito permanente, mas Marcelo perdeu a confiança em Costa; e dificilmente voltará a recuperá-la. O ponto mais extraordinário nesta história foi o modo leviano como Costa desvalorizou a palavra presidencial. Desde os incêndios de Pedrógão Grande, em Junho, o Presidente não se cansou de avisar o governo que uma tragédia daquelas não se poderia repetir. Marcelo insistiu durante todo o Verão. Nunca se cansou de avisar. Mas Costa não ligou nada aos avisos do Presidente. Costa não entendeu como Pedrógão marcou Marcelo Rebelo de Sousa. Também não percebeu como Marcelo ficou chocado com as suas férias, logo depois do incêndio.

Ao ignorar o Presidente, Costa cometeu um erro muito grande. São estes erros que me levam a desconfiar dos talentos políticos que tantos notam no PM. Foi um erro de um político amador e inexperiente. Como foi possível que Costa ignorasse os avisos vindos de Belém, sobretudo porque precisa tanto de Marcelo para contrabalançar as alianças à esquerda? O modo radicalmente oposto como Marcelo e Costa reagiram a Pedrógão mostra uma grande diferença entre os dois. O Presidente percebeu que a morte de mais de 60 pessoas devido à falta de cuidado do Estado marcou um momento de viragem política. Costa olhou para Pedrógão como um problema que seria ultrapassado pelo tempo e pelos talentos de spin do governo. Depois do regresso da política no final de Agosto, enquanto Marcelo continuava a avisar que nada poderia ser como antes de Pedrógão, Costa só pensava na sua popularidade e nas eleições autárquicas. Para o PM, Pedrógão estava cada vez mais esquecido no passado.

Os incêndios de 15 de Outubro transformaram o erro grande de Costa num erro fatal. Cidadãos portugueses voltaram a morrer por incúria do Estado. E Costa voltou a reagir muito mal. Em Outubro percebemos que afinal tinha sido uma boa decisão ter ido de férias em Junho. Pior do que tudo, o que não poderia voltar a acontecer, como havia avisado o Presidente, aconteceu mesmo. O famoso Conselho de Ministros do sábado da semana dos incêndios foi a maior demonstração de que Costa não levou Pedrógão a sério. Afinal, ainda havia medidas a tomar. Por que razão as decisões tomadas em Outubro não foram tomadas em Junho depois de Pedrógão? Por que razão o governo teve que assistir a mais uma tragédia para tomar as decisões que tomou naquele Conselho de Ministros? Por que razão Costa ignorou os avisos de Marcelo? O PM deve aos portugueses respostas a estas questões.

O afastamento entre Belém e São Bento deixam o PM muito mais exposto aos seus parceiros da geringonça. A partir de agora, vai ser mais difícil geringonçar. E também aqui a palavra chave é confiança. As esquerdas conhecem-se demasiado bem para confiarem umas nas outras. A aliança entre elas foi, desde a nascença, inteiramente negativa: foi feita contra Passos Coelho e contra a direita. Como em todas as alianças negativas, onde há pouca confiança, o tempo torna a geringonça cada vez mais frágil e cuja gestão será mais complicada. Já todos percebemos que neste momento o PCP tem um pé dentro e outro fora da geringonça. Só o pé direito é que está a geringonçar, o esquerdo já só quer manifestações e greves. Vendo o Orçamento de 2018, também já entendemos que Costa pode ser tentado a provocar eleições antecipadas, sobretudo se a Catalunha e o Brexit começarem a prejudicar a economia europeia. A partir deste momento, só uma questão interessa aos partidos da geringonça: como vamos sair desta aventura sem nos prejudicar e empurrando os danos políticos para os outros? Se a criação da geringonça foi uma novidade na política nacional, a sua destruição será uma segunda novidade. Ninguém sabe como vai terminar. Mas tendo em conta a história das relações entre os três partidos e a falta de confiança uns nos outros, não será nenhuma surpresa se o fim correr mal.

PS: Pacheco Pereira não resistiu e caiu na provocação de Santana Lopes. Passou cerca de 10 minutos na última Quadratura do Círculo a atacar o rival de Rui Rio à liderança do PSD. Será que ninguém explica a Pacheco Pereira que cada vez que ele fala, Santana ganha votos entre os militantes do PSD? Pacheco Pereira terá razão quando acusa todos os sociais democratas de conspirações. Mas o caso dele é bem pior. Todos no PSD olham para Santana como um membro da família. Pode ter conspirado, mas pertence à família popular/social democrata. Para os militantes do PSD, Pacheco não faz parte da família. Usou simplesmente o partido, tal como usa agora, para promover a sua carreira de comentador profissional. Ele é o troféu que dá legitimidade às críticas das esquerdas contra o PSD. E isso os sociais-democratas não perdoam. Dentro de casa, as traições perdoam-se. Mas a ajuda aos adversários não tem perdão. Se Pacheco Pereira quer mesmo ajudar Rui Rio, deveria tirar uma licença sabática, escrever mais um livro sobre o PCP e voltar no próximo ano, depois das eleições internas no PSD. Se não o fizer, será um dos maiores aliados de Santana e um dos maiores problemas para Rio. O pobre do Rui Rio deve suar cada vez que Pacheco fala ou escreve sobre as eleições no PSD.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR