A acreditar em quase tudo o que se lê, parece que Henrique VIII apareceu de novo por aí, arrastando a gota, a velhice, e os cadáveres das ex-mulheres, para romper intempestivamente com Roma, que agora se chama Bruxelas e é onde reside Jean-Claude Juncker. Mas não é exactamente assim. O que aconteceu tinha, de uma maneira ou outra, de acontecer. E não precisava de ser com o Reino Unido. Podia ser um país qualquer e os motivos mais imediatos podiam ser de ordem completamente diversa. Claro que o Reino Unido era um candidato mais evidente, por uma série de razões que têm a ver com a sua história particular e a sua cultura, e que o inclinavam (sem necessitar, como dizia um filósofo) para aí. Mas podia ser um outro país qualquer com algum poder, repito, e os que se seguirão, e alguns seguir-se-ão, palpita-me, não o farão por causa do Reino Unido, ou não o farão principalmente por isso.

Não é, obviamente, que a União Europeia, na intenção que presidiu à sua criação ou na sua prática efectiva, seja dotada de um qualquer apetite destrutivo. Muito pelo contrário, nas intenções e na maioria das acções o desejo é construtivo e os resultados foram benéficos para quem devidamente fez por isso, e benéficos para todos antes de se começar a colocar a questão de saber quem tinha e quem não tinha feito o que havia a fazer. O problema, se vejo bem as coisas, é outro. O problema é que esse desejo de construção sempre assentou, e provavelmente tinha de ser assim, na ignorância, voluntária ou involuntária, de duas questões, uma geral e outra particular. Essa ignorância foi particularmente notória no caso de um “visionário” utopicamente fascinado com o seu próprio pensamento como Jacques Delors.

A questão geral, que pode parecer abstracta mas não é, é a da importância da passionalidade na vida das comunidades políticas, algo que a filosofia política, salvo algumas excepções, tendeu a ignorar já a partir do século XIX, uma ignorância que depois só se foi avolumando. As sociedades não são corpos lisos dispostos a serem disciplinadamente dirigidos. São entidades rugosas, com passionalidades próprias, que precisam, para funcionarem, de formas de poder que se adaptem a essas rugosidades. E não é só a importância das paixões que é preciso ter em conta: é também a sua diversidade. Mesmo que as paixões sejam as mesmas em todas as comunidades políticas, a acentuação de cada uma varia de uma comunidade política para outra, como variam os conteúdos particulares que são o objecto das paixões. A paixão do medo, por exemplo. Cada nação europeia possui medos particulares, fruto de experiências históricas diferentes. Os medos alemães, ou finlandeses, ou polacos, ou portugueses, não são iguais uns aos outros. Tony Judt escreveu há alguns anos umas boas páginas sobre isto. A União Europeia erigiu-se sobre o esquecimento racionalista, ou pseudo-racionalista, construtivista, da passionalidade política. E provavelmente, repito, só podia ser assim.

Como se erigiu, e essa é a questão particular, sobre o esquecimento do problema da soberania. “Esquecimento” nem é provavelmente a boa palavra. Aqui, como também em relação às paixões, “recalcamento” é, se calhar, melhor. Um recalcamento muito activo. E que, num mundo ideal, funcionaria às mil maravilhas. Mas o mundo real não é o ideal. E o discurso federalista, que há uns não muitos anos atrás era dominante, com a sua retórica do “aprofundamento”, avançando à velocidade da bicicleta de Delors, choca contra muros antiquíssimos. A soberania é um muro antiquíssimo. Claro que a soberania, na sua definição teórica, é absoluta, e as soberanias práticas, provavelmente hoje mais do que nunca, são sempre parciais e relativas. Mas, como em tantos outros domínios, as colectividades vivem de ficções (a União Europeia é, de resto, um bom exemplo disso: precisa delas como de pão para a boca). E a soberania é uma das ficções sem as quais dificilmente podem passar. Decretar, por um passe de mágica, que o conceito é obsoleto e facilmente descartável é não conseguir, como dizia o outro, ver para além do fumo da sua própria chaminé.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Se a soberania externa, a que se manifesta na relação entre os Estados, pudesse ser dispensada, mantendo a soberania interna, aquela que respeita à relação de cada governo com a sociedade que representa, do mal o menos. O problema é que não pode ser assim. A perda da soberania externa acarreta forçosamente a perda da soberania interna. O nosso soberano deixa de ser nosso soberano quando se torna súbdito de outro soberano, dizia Hobbes. Continua a ser muito assim, mesmo que no caso presente a subordinação se faça não a um verdadeiro soberano mas a uma criatura equívoca e, desculpe-se, vagamente anómala. O que leva a situações políticas no mínimo indesejáveis, como o formidável peso dos populismos de extrema-esquerda e de extrema-direita por essa Europa fora. Eles não são o resultado das “políticas de direita” de Merkel e dos outros, que até são, no geral, políticas justas, e que desapareceriam, como por milagre, se fossem adoptadas (como?) “políticas de esquerda” (quais?). Os populismos são antes o produto de um sentimento difuso da perda da soberania interna dos Estados, resultado necessário da sua perda de soberania externa. Os populismos e os independentismos acentuam-se não apesar, mas por causa, da União Europeia. O vazio no interior das sociedades tem de ser passionalmente preenchido de uma maneira ou outra.

Nesta constatação – creio mesmo que é uma constatação – não há, repito, qualquer atribuição de uma intenção maligna à União Europeia. Os propósitos são excelentes e as acções geralmente benéficas. Tudo o que se pode censurar são os recalcamentos necessários para que a intenção se cumpra e as acções resultem. Ora, segundo a boa doutrina, o recalcado retorna sempre. O retorno estava aí à vista de todos, com a degradação do patriotismo em nacionalismo e com a regressão do discurso político europeu, às mãos de Iglesias, de Le Pen, e, mais modestamente, da Catarina de cá. Uma degradação e uma regressão cujas consequências foram obviamente pressentidas em Bruxelas: daí o medo, o pânico, de mais “saídas”, um medo que não pode augurar nada de bom, além de ser a constatação explícita de um fracasso. Mas a coisa não parece poder resolver-se, o que é pena, com o simples aligeiramento da célebre burocracia europeia, e sem dúvida muito menos com um aumento de velocidade da bicicleta de Delors em direcção a uma integração “cada vez maior”. Uma integração cada vez maior é meio caminho andado para uma desintegração cada vez maior. Merkel fez, muito louvavelmente, todos os esforços possíveis e imaginários para manter a bicicleta europeia de pé. Mas até ela, apesar do seu forte instinto e da sua grande habilidade, falhou. E não se vê como fazer muito diferente, a não ser para pior. Aí, é verdade, no campo do pior, há férteis paisagens a explorar e muita gente candidata a tornar mais fundo o abismo.

E o Reino Unido? Passo por cima das várias raivas, umas explicáveis outras não, com o Brexit e da linguagem que às vezes as acompanha, feita de agressiva sensibilidade demonstrativa. É o costumeiro momento Guerra Junqueiro, em que alguns se apanham a desejar ver os lordes cortados às postas a boiar no Tamisa. O Brexit, pelo menos como o vejo, é simultaneamente o resultado do impasse europeu, até na ideologia populista de alguns que defenderam a saída, e uma tentativa de sair para fora desse impasse e de evitar o progresso da radicalização (à francesa, por exemplo) no interior da sociedade. Obedecendo a paixões britânicas, com génese histórica traçável, e a uma atenção à soberania, meio real meio fictiva, que não abunda noutros lugares. Não quero incorrer em lirismos sobre a singularidade britânica, mas reduzir uma coisa e outra (as paixões, as rugosidades que fazem a singularidade, e o desejo de soberania) à loucura, ao medo dos velhos, esses chatos chatíssimos, à retórica de demagogos de pub ou de Eton, ou à pura e simples irresponsabilidade, não é racional. Basta pensar um bocadinho, de boa fé, para perceber que não é racional.

As consequências? Ninguém faz ideia exacta. Cada vez leio menos revistas, mas a Economist diz que são más, ou péssimas, e a Spectator diz que são boas, ou muito boas. Por mim, espero que sejam boas para o Reino Unido e que a Escócia e a Irlanda do Norte não partam. Não sou conservador, mas gosto de continuidades. Além de que teria pena de ver a bandeira mais pop do mundo deixar de o ser, perdendo o azul escocês. E, se possível ainda mais, que não sejam más para nós. Já temos apanhado muita pancada nestes últimos anos (menos do que aconteceria sem a União Europeia, é verdade) e não daria gosto apanhar ainda mais. Espero sobretudo que uma ou outra cabeça desvairada e oca não contagiem muitas pessoas e ninguém nos queira pôr fora da União Europeia. Porque aí a catástrofe seria certa, como os gregos, peritos na matéria, a seu tempo perceberam no que a eles dizia respeito. É que nós não somos o Reino Unido. Não somos a quinta maior economia do mundo nem a maior potência militar europeia, entre outras coisas. Ao contrário do que extremosos entusiastas da dita União Europeia, em momentos mais liricamente federalistas, nos quiseram fazer acreditar. Cada macaco no seu galho. Estamos metidos nisto até ao pescoço e bravatas é do que menos precisamos.