Há apenas 235 anos, perto do final do século XVIII, Mozart ainda evocava na primeira ópera que estreou em Viena (O rapto do serralho, 1782) a memória da presença turca na Europa, que só há menos de um século começara a afastar-se definitivamente da Áustria, da Hungria e da Europa oriental, até ficar reduzida ao enclave que hoje detém no lado de cá do Bósforo. Hoje, no momento em que começo a escrever esta crónica dominical, as urnas do referendo que teve lugar este domingo na Turquia – a fim de decidir se o país se afastava de novo da Europa e se rendia de novo a uma ditadura islâmica – fecharam há menos de quatro horas.

Apesar da recuperação final do “Não” nas maiores cidades do país, em particular Istambul e Esmirna, ambas sobre o Mediterrâneo, com perto de 97% dos votos contados está virtualmente garantido o “Sim” à nova Constituição proposta pelo Presidente Erdogan. Quanto aos votos da «diáspora turca» na Europa, já foram contados e, como era de recear por parte dos emigrantes, vão no sentido do “Sim”. Entretanto, a oposição impugna os resultados. Seja como fôr, tudo leva a crer que, embora o “Sim” e o “Não” estejam separados por pouquíssimos pontos percentuais, como já sucedeu com o «Brexit» no democrático Reino Unido e poderá acontecer algo política e culturalmente equivalente na democrática França dentro de três semanas, a nova Constituição turca concluirá a bem ou a mal o processo ditatorial em curso.

Este processo já estava, aliás, claramente delineado pelo golpe ou contra-golpe que Erdogan e os seus seguidores acabaram por mover, há menos de um ano, contra os últimos resistentes de uma ordem minimamente pluralista, hoje assassinados, encarcerados ou expulsos dos empregos às dezenas de milhar. Os paralelos remotos de Mussolini e Hitler confirmam aliás que os ditadores podem muito bem começar por ser eleitos… E se, por milagre, o resultado final do referendo ainda se alterasse, o processo em curso não se deteria perante uma repressão brutal, seja sobre os militares, juízes e outros funcionários públicos da oposição, seja sobre os «media» e o professorado, até à implantação da ditadura com todas as suas características de dominação total.

Isso afastará de vez a Turquia da Europa, à qual na realidade só pertenceu por oportunismo de uns e outros, incluindo a NATO, facto este que os Estados Unidos, sob a actual presidência, terão a maior dificuldade em gerir, assim como a União Europeia terá o maior embaraço em resolver o chamado «problema dos refugiados» provenientes de um Médio Oriente virado do avesso, seja lá por responsabilidade de quem. Os anteriores dirigentes norte-americanos e britânicos terão, seguramente, muito mais responsabilidades nisso do que os europeus!

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Como todos os actuais processos de mudança em que temos estado envolvidos nos últimos tempos à escala internacional, também o processo ditatorial turco fractura o país rigorosamente a meio, opondo frente a frente a metade mais moderna à mais conservadora. A clivagem, porém, não passa tanto ou não só pela arcaica divisão entre a esquerda e a direita dos manuais partidários, como tantas vezes se crê, mas sim por uma espécie de regressão cultural perante as mudanças e desigualdades de tipo novo originadas pelo êxito contraditório da globalização económica e financeira, bem como mediática e tecnológica, nas últimas décadas.

Por seu turno, estas novas fracturas causadas pela globalização remeteram concretamente uma grande parte da população em todo o universo globalizado, sem que as oligarquias políticas reinantes se apercebessem disso, para as convicções ideológicas mais primárias, ou seja, para a política como religião pela qual sempre se regeram, aliás, tanto as ditaduras de direita como as de esquerda. Em contextos como estes, a ideologia acaba sempre por se refugiar num misto demagógico entre nacionalismo e religião ou qualquer substituto desta que dão origem, por sua vez, à multiplicidade de «populismos» que hoje brotam de um dia para o outro.

No caso preciso da Turquia, só por ironia se pode perguntar, como fazia ainda agora Teresa de Sousa, se alguma vez, em lugar algum, o islamismo foi compatível com a democracia? Nem na Turquia nem, infelizmente, em nenhum outro país islâmico, por motivos que não são, afinal, tão difíceis de entender. Só na nossa área geocultural, basta pensar no tempo que a democracia levou a implantar-se, em geral fragilmente, nos países católicos e ortodoxos, por óbvio contraste com os países protestantes.

Possivelmente, o que está a suceder hoje é que as sociedades emergentes de décadas de globalização, incluindo as que consideram estar no «centro» do processo, como os Estados Unidos e a UE, estão fracturadas por divisões e perspectivas inéditas para as quais as democracias tradicionais, especialmente as de baixa intensidade como sempre foi a nossa, não foram concebidas e mostram ter muita dificuldade em se adaptar. Foi por isso que a liberdade individual adquiriu um valor único como critério democrático – exactamente aquele que uma pequena maioria de turcos deitou hoje a perder.