Há uma cena inesquecível no inesquecível “E tudo o vento levou”: quando os jovens sulistas, à notícia da guerra iminente, demonstram com exuberância o seu júbilo e cantam antecipadamente um conto de fama e glória.

Assim vivemos todos, na antecipação de coisas espantosas, que todos os dias se anunciam no “reality show” em que se transformou a vida de todos nós, com a morte estampada no ecrã, em todos os ecrãs em que nos revemos, como se fosse a coisa mais natural do Mundo. À espera da sensação que nos impressione, até da guerra, num tempo em que já quase nada nos impressiona, nem a guerra.

O homem brande uma arma, dispara tiros, mata outro homem, sob a câmara silenciosa da máquina fotográfica? É natural, assistimos à cena tantas vezes, no cinema, na televisão, nos i-pads, no facebook. Ah, desta vez é real? Mas qual é a diferença se eu não conheço o homem, se nunca o vi, se não muda nada na minha vida a sua morte?

É verdade e faz sentido: que diferença existe entre a morte de um Embaixador russo desconhecido – cujo nome nenhum de nós ouvira pronunciado antes e cujo nome esqueceremos amanhã – e os milhares de refugiados mortos afogados no Mediterrâneo ou, ainda antes de se poderem tornar refugiados (nem refugiados tiveram direito a ser!), os bombardeados de Alepo, os soterrados em Alepo, os vulgares mortos de Alepo?

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Em nome dos refugiados que o não chegaram a ser em Alepo, em retaliação por eles, foi morto o Embaixador da Federação Russa em Ancara, Andrei Karlov. Faz sentido? Leio os comentários nas redes sociais: “Foi muito bem morto”, “é a vingança pelos inocentes de Alepo” e, em crescendo, “a culpa é do Obama”, “a culpa é de Putin”, “a culpa é do Hollande”, “bem feito”, “a guerra vai começar”, etc. Nos meios oficiais, a reacção é institucional, medida, proporcional: um acto hediondo, cobarde, odioso. Mas nada impedirá que o dia-a-dia depressa retome o seu rumo normal, a aguardar o próximo acto hediondo e odioso.

A nossa vida tornou-se um gigantesco “reality show”. Com câmaras em todo o lado, a apontar para cada canto obscuro das nossas cidades, cada vez menos coisas escapam ao olho implacável do “big brother”. Seja um Embaixador, seja um homem comido por um tigre, sejam crianças alvejadas em Alepo ou afogadas nas praias da Líbia, gente de todas as idades atropelada por um camião no passeio dos ingleses, vultos num ápice vaporizados por dez quilos de explosivos, ver morrer em directo banalizou-se. Vemos, indignamo-nos, postamos nas redes sociais “eu sou isto ou aquilo” e aguardamos sentados, descansados, impávidos e serenos, pela próxima notícia, o próximo vídeo.

No mesmo dia em que Andrei Karlov foi morto à queima roupa por um polícia turco à paisana para o Mundo inteiro ver, um camião atropelou uma multidão numa feira de Natal, em Berlim, matando pelo menos 9 e, em Zurique, um tiroteio no interior de um centro islâmico feriu três pessoas.

Já não sabemos como adjectivar os mortos nos atentados terroristas quase diários um pouco por todo o lado; lemos notícias sobre as perseguições aos rohingya na Birmânia, sabemos que 7200 migrantes morreram no caminho para a salvação em 2016, falam-nos de explosivos encontrados no avião da Egyptair caído no Mediterrâneo em Maio, houve um duplo atentado suicida num mercado da Nigéria, vemos imagens dos autocarros de evacuação dos civis atacados na Síria, ouvimos falar nos 13 militares mortos num atentado bombista na Turquia (sempre a Turquia, sempre o Médio Oriente, sempre o mundo árabe, origem mas também destino da maior parte dos atentados terroristas); e tudo isto (e muito mais) apenas na última semana – lemos, sabemos, vemos e ouvimos e escolhemos não ligar.

Não me entendam mal, é normal. Não poderia não ser assim, pois o sofrimento que nos infligiria tomarmos o sofrimento alheio a sério, a fundo, com alma e ganas, seria provavelmente insuportável. E por isso protegemo-nos com o escudo da indiferença, salvo honrosas e corajosas excepções. Que as há, não me entendam mal.

Foi sempre assim, “homo homini lupus” (o homem lobo do homem)? Foi, mas os nossos antepassados tinham a sorte e a desculpa de não ver ao vivo e a cores as mortes alheias e a dor alheia. Ignorar era mais fácil, e os relatos por escrito, os romances, o teatro, não davam senão uma dimensão intelectualizada ou romantizada da vida dos outros.

Hoje, pela força do hábito, habituámo-nos a conviver com a morte em directo. Tornámo-nos indiferentes. E se a violência nos meios de comunicação não é novidade, a emergência em força da Internet e das redes sociais em particular torna-a ainda mais visível, a espreitar em cada esquina do facebook, provocadora, insidiosa e fascinante. Quantas pessoas resistem a um post que promete a morte em directo de outro ser humano? Sinceramente?

Habituamo-nos à violência e ela deixa de nos chocar, banalizando-se na vida real.

O boxe é violento? Mas não chega, é preciso mais para excitar as mentes jovens – e adultas – cada vez menos impressionáveis: e inventa-se a luta numa jaula, em combates de MMA (“mixed martial arts”) que por vezes levam à morte dos lutadores, como aconteceu com João Carvalho. Mas não é morrer que conta, necessariamente, pois o risco faz parte de muitos desportos, como o automobilismo ou o râguebi, e nem por isso eles são proibidos; importa é a violência, o gozo de ver seres humanos ocupados a destruir o oponente.

Já o anunciado “Game2-Winter”, um concurso cujo vencedor será quem, de entre 30 concorrentes, sobreviva nove meses no frio siberiano, promete levar o “voyeurismo” e o anúncio (ou a possibilidade) de morte a um novo nível: todos usarão facas e devem assinar um termo de responsabilidade a ilibar os produtores de quaisquer consequências em caso de acidente. A taiga, diz o dono do projecto, estará coberta de câmaras e cada concorrente transportará uma câmara portátil. É a versão real dos Jogos da Fome.

Já não estamos longe do regresso dos gladiadores, mostrados nas televisões, heróis de um novo tempo. Retrogradação ou progresso? Uma coisa é certa, não se trata de uma questão ideológica, pois nem esquerda nem direita têm o monopólio e o culto da violência.

A questão é civilizacional. A dor dos outros distrai-nos? Pois que seja servida como sobremesa ao jantar, ou como aperitivo a qualquer hora em que ligar o meu aparelho.

Há qualquer coisa estranhamente mórbida na espécie a que pertenço.