É verdade, enganei-me. Fui ao futuro e enganei-me: o Reino Unido (RU) votou contra a União Europeia (UE).

À última hora, o eleitor com quem falei mudou de opinião. Que grande erro (o meu, claro). Mas como a mordedura de um cão se cura com o pelo do mesmo cão (provérbio com longínqua origem latina em Hipócrates, “similia similibus curantur” isto é, o mesmo cura o mesmo), voltei ao futuro em busca da resposta a três perguntas:

O Reino Unido vai mesmo sair da União Europeia? E que acordo poderá aspirar a obter dos seus parceiros europeus (ainda)? E a Europa, vai-se desintegrar, como tem sido tão repetido?

Relativamente à primeira interrogação: o Reino vai mesmo sair da UE, e sairá unido? A petição lançada em Maio, pedindo a mudança das regras dos referendos – que a ter sido já aprovada poderia ter levado a um segundo referendo – , não terá provavelmente resultado mas ainda muita água vai correr debaixo da ponte antes do país iniciar negociações para a saída com a UE; e ainda mais (pelo menos dois anos) antes da saída se consumar. Recordo que nada obriga o RU a pedir a saída numa data determinada, e já se percebeu que a vontade dos responsáveis – desde logo de Cameron, mas também dos “Leavers” – é a de ganhar tempo, antes de acionar o artigo 50º e pôr em marcha o relógio da saída (o “countdown” é de 2 anos, como disse).

E um cenário começa a tomar forma: nos Comuns há uma clara maioria de “Remainers”. Claro que o Parlamento não tomará qualquer decisão contra o voto popular, mas imaginem que, entretanto, se realizam eleições gerais (desencadeadas pelo Brexit); que um voto maioritário elege o partido – ou os partidos – que se apresentarem a favor de um “Breturn”; que as negociações com a UE não correm favoravelmente aos interesses britânicos, que a Escócia envereda decisivamente pela ruptura com o Reino, ameaçando fazer da Grã-Bretanha uma só Bretanha (Inglaterra e Gales); e imaginem que o acordo final com a UE é manifestamente ruinoso e que, entretanto, a economia se continua a afundar (deslocalizações, fuga constante de capitais, libra cada vez mais frágil, mais desemprego)?

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Imaginem tudo isso, que não é difícil de imaginar. E esticando um pouco mais a imaginação, o que impede um Parlamento constituído por uma bancada forte a favor do “Breturn” e um governo consistente, argumentando com os resultados das negociações, de pedir um novo referendo, não para reverter o anterior mas para aprovar ou rejeitar os termos da saída?

Repito o cenário: um referendo para decidir sobre o resultado da negociação com a UE poderia ter como consequência a retirada do pedido de saída – e nada no artigo 50º (nem na jurisprudência sobre o assunto, que não há) o impede. Fui ao futuro e sei que o assunto estará em cima da mesa. Mas não sei mais nada…

Relativamente às negociações e ao possível acordo com a UE, nunca tanto se escreveu sobre algo a respeito de que se sabe tão pouco; na verdade, não se sabe nada (pode nem haver um acordo, já agora). Não há ainda mandato do Conselho da UE transmitido à Comissão, o qual estabelecerá a orientação a seguir pelo executivo e, sobretudo, as linhas vermelhas a não ultrapassar. Tudo o que se tem ouvido de líderes europeus, incluindo britânicos, não passa de afirmações mais ou menos emocionais, mais ou menos ultrajadas, ainda sem substância.

Ainda assim, creio que se podem afirmar três coisas: a União não quererá humilhar nem castigar o RU, mas será firme na afirmação de que do “Brexit” não pode resultar que o país continue a beneficiar do mercado interno, das políticas europeias ou de quaisquer outros benefícios decorrentes da integração europeia; qualquer acordo que resulte no acesso do RU ao mercado interno em condições de privilégio (em relação às regras gerais da OMC) terá necessariamente de respeitar princípios europeus como o da livre circulação de pessoas e de ter um custo (caso, por exemplo, da Noruega); e finalmente, mas não de menor importância, as negociações far-se-ão nos termos da UE e não de qualquer agenda britânica. O artigo 50º, tão citado, foi concebido com esse objectivo.

Os britânicos, com excepção de escoceses, irlandeses e londrinos, disseram que já não querem ser membros do clube que os aceita como membros. Groucho Marx acrescentaria que talvez eles gostassem de continuar a ser membros caso o clube deixe de os aceitar como membros (ou, pelo menos, não lhes permita as concomitantes regalias).

A derradeira questão é sobre o futuro da União Europeia. Mais uma vez, muita gente se precipita, concluindo que o processo de dissolução está em curso. Enganam-se, na minha modesta opinião: a saída do RU, a concretizar-se, tornará a integração europeia muito mais forte. Por três ordens de razão:

  • Porque ela é mais necessária do que nunca; os europeus não podem permitir que as forças mais retrógradas do continente, como sucedeu tantas vezes no seu terrível passado, voltem a triunfar. E se elas rejubilam com o Brexit, e se agitam pedindo novos referendos noutros países, é porque pressentem que este é o momento, agora ou nunca, de agitar os fantasmas da xenofobia, do ódio e da intolerância.
  • Em segundo lugar, as consequências do Brexit, ou da sua simples ameaça, já visíveis, serão uma vacina poderosa contra outras tentações secessionistas: e uma eventual ruptura do Reino Unido, processo infelizmente já em marcha, colocará sob pressão a unidade nacional em vários países europeus, desencadeando uma reacção em cadeia; só a integração europeia poderá evitar o colapso de muitos Estados-nação europeus.
  • E, finalmente, a saída do RU, paradoxalmente, remove da União o maior obstáculo ao aprofundamento e conclusão da integração de políticas cruciais como a monetária, da circulação dos serviços, das políticas migratórias. Com os seus muitos “opting-out”, excepções à participação em várias políticas europeias como Schengen, euro ou livre circulação, e ainda mais com o acordo – vexatório para a União – conseguido em Fevereiro por Cameron, o Reino Unido é um factor destabilizador do caminho que a União deve seguir, que é de mais união e não menos. Repito: mais União e não menos.

Peço humildemente desculpa aos meus leitores por me ter enganado sobre o Brexit: o futuro em que estive, afinal, era um futuro ideal em que o bom senso teria triunfado e os ingleses, mantendo-se unidos no seu reino, continuariam a colaborar com os vizinhos e parceiros europeus na construção de um futuro melhor para os seus filhos.

Mas ainda há tempo, mas ainda há caminho. A Europa, este nosso belo continente, terrível e magnífico, ainda não disse a sua última palavra.