Luísa Sobral disse, à chegada a Lisboa, que queria agradecer à equipa da RTP o apoio que receberam durante o tempo que passaram em Kiev, e o Salvador reforçou este mesmo agradecimento. Visivelmente cansados, os irmãos Sobral tentaram responder a cada uma das perguntas dos jornalistas, mas no fim tudo podia resumir-se numa palavra: gratidão.

Luísa e Salvador cantaram em português, mas são ambos fluentes em inglês e por isso acho que não me levam a mal vir agora aqui com inglesismos sublinhar a sua gratitude attitude. Soa mais universal e vem a propósito, dado o fabuloso consenso de países e cidadãos estrangeiros na votação final.

O discurso de gratidão dos irmãos Sobral ocupou o tempo necessário para percebermos várias coisas, todas elas fundamentais para a estrondosa vitória. Desde logo, o verdadeiro espírito de equipa que permitiu a cada um ser quem era, sem poses nem defesas ou artificialismos. Fazer grupo e funcionar em equipa não é nada óbvio, sobretudo quando se trata de conjugar técnicos e artistas, jornalistas e autores, entre muitos outros profissionais. Diria mesmo que nada é mais difícil que afinar coros de vozes e egos dissonantes e, também por isso, as declarações da Luísa e as palavras do Salvador têm um eco especial.

A realidade dos bastidores do eurofestival não é fácil de atravessar, dada a competição e o stress que se vivem em acontecimentos desta magnitude, com cobertura e impacto internacionais. Trabalhei em televisão durante décadas e sei bem o que são os bastidores de grandes emissões. Há de tudo, do melhor ao pior. O espírito de equipa nem sempre prevalece, e dentro de grupos mais ou menos alargados pode haver muitos grupinhos à parte. É habitual e ninguém estranha. Daí a importância deste sublinhado final dos irmãos Sobral. Acima de tudo valorizam o que merece ser valorizado: fazer equipa e trabalhar em conjunto.

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O Salvador ganhou olímpica e destacadamente o festival europeu da canção por mérito próprio, por ter uma voz única, inigualável, absolutamente original e, diria mesmo, divinal, mas não ganhou sozinho. Precisou, primeiro, de ser interpelado pela autora e compositora da canção, dado que era esse o desafio inaugural. Este ano a RTP convidou compositores das novas gerações e cada um era convocado a pensar no melhor intérprete para a sua letra. A Luísa Sobral, que é uma extraordinária cantora e compositora, com carreira consolidada e projecção internacional, pensou naturalmente no Salvador por conhecer a qualidade musical do irmão.

Depois de ter a letra escrita e musicada, o Salvador e a Luísa contaram com o Luís Figueiredo para o maravilhoso arranjo de cordas, que faz toda a diferença nesta canção. Para além dos seus músicos, o Salvador também precisou do apoio da sua agente, de toda a energia e confiança que ela é capaz de lhe dar. Tenho pena de ainda não saber o nome da agente, mas sei que é uma força vital para o Salvador Sobral.

Aos músicos juntou-se uma equipa técnica exclusivamente dedicada aos ensaios e a tudo o que foi preciso fazer e organizar durante o tempo de vésperas do festival. Foram dias intensos e exigentes, mas aparentemente tudo correu pelo melhor. Mesmo que a Luísa e o Salvador não tivessem feito questão de agradecer publicamente a esta equipa, dava para perceber que se sentiram completamente em casa. E mais: o facto de o Salvador ter obrigatoriamente que descansar antes de viajar para Kiev, e só lá poder estar nos dois dias que antecederam o festival, gerou entre todos uma onda de solidariedade que se converteu numa poderosa amizade. Graças ao empenho e generosidade de cada um dos elementos da equipa da RTP e dos músicos, todos viveram uma sucessão de momentos felizes e cúmplices que não se esquecem. Esta atitude de entreajuda não só marcou a Luísa e o Salvador, como os encheu de confiança para as performances de bastidores e palco.

Os dois prémios que ambos receberam antes da final também revelaram a sua motivação de fundo e, mais uma vez, foram amplamente justificados pelo trabalho em equipa. O prémio artístico, atribuído a Salvador pela sua interpretação, foi uma distinção feita pelos comentadores do festival. Luísa recebeu o prémio da melhor composiçao em competição, e foi assim que antes da final, os dois irmãos já eram grandes vencedores, detentores dos dois únicos prémios extra-concurso, os célebres Marcel Bezençon Awards.

Tudo isto revela excelência musical, mas também a qualidade humana destes dois irmãos e da sua equipa. Vi um vídeo a que poucos tiveram acesso, e foi captado no momento em que a Luísa e o Salvador se preparavam para um ensaio geral. Estavam os dois sentados no chão, atrás do palco, a cantar a canção da Finlândia. Enquanto todos os outros vocalizavam e cantavam as suas próprias músicas, os Sobral tocavam animadamente a canção de um dos concorrentes com quem competiam. Dá que pensar, esta sua abertura de coração e espírito, assim como também nos interpela a capacidade que tiveram para aprender instantaneamente a música de um dos seus rivais. Cantavam com alegria e descontração e a sua boa disposição certamente não passou despercebida a ninguém.

Volto ao meu ponto para concluir: sem a equipa e o seu apoio, sem a generosidade de cada um, sem o profissionalismo de todos, sem a entrega total de músicos e técnicos, sem o sacrifício dos que sacrificaram tudo para esta vitória, sem a presença da família e de um médico e amigo muito especial, mas também sem a vontade própria de vencer, o Salvador não teria conseguido chegar onde chegou. É e será sempre um músico ‘bom demais’, para usar as palavras de Caetano Veloso (que hoje está em Portugal e vai certamente conhecer o Salvador), mas se estivesse sozinho teria demorado a chegar onde chegou. Muito mais importante do que ganhar uma edição do festival Eurovisão, era a urgência imperativa de divulgar e amplificar a música do Salvador. O mundo estava a precisar de conhecer mais uma voz única. Uma voz que não se esquece e apetece ouvir, e voltar a ouvir logo a seguir.

Valeu a pena a RTP ter apostado tão alto e ter destacado alguns dos seus grandes profissionais (neste fim de semana os melhores entre os melhores foram divididos em três mega equipas, para cobrirem quase em simultâneo a vinda do Papa, a vitória do Benfica e o festival da Eurovisão), mas acima de tudo valeu a pena a RTP ter mudado o padrão dos festivais da canção, convidando músicos e compositores da nova geração. Graças a esta aposta o Salvador arrasou. Ganhou ele e ganhamos todos nós, porque ninguém ganha nada verdadeiramente importante sozinho.