Tudo está preso no mesmo movimento. Os rudimentos da vida perpetuam-se, mesmo que a vida de cada um não se eternize para lá da memória dos que não esquecem. Passam as civilizações e as gerações; choram de saudades os que ficam, alegram-se os que apesar das tristezas encontram novos sentidos e percorrem outros caminhos. Ainda que nada dure e até o mármore esculpido possa quebrar-se, arruinar-se e voltar a ser pedra por lapidar, o universo onde se inscreve a acção dos homens está escorado neste movimento continuado dos que nos antecedem e dos que nos hão-de suceder.

A incerteza talvez também seja perpétua. E a fragilidade, assim como a esperança. E o seu contrário, pois conhecemos demasiado bem a conjugação sob as duas formas. O tempo é incerto, a vida errática e tudo muda quando menos se espera. Ou quando não apetece a ninguém. Foi o que aconteceu a Michael Biberstein, o pintor suíço-americano que se via inteiramente português e partiu cedo demais, cheio de sonhos por cumprir. Ele, e tantos como ele que tanta falta fazem na terra, vão e deixam obras inacabadas. Para uns são filhos ainda pequenos, para outros são construções maiores.

Michael Bibertsein, homem grande e de poucas palavras, dizia que as suas pinturas falavam por si e exprimiam muito mais do que algum dia ele próprio conseguiria expressar. Pintava quadros enormes. Telas depuradas e cheias de luz, misteriosas e intensas, horizontes só dele que exercem sobre nós um fascínio exaltante, um encantamento puro que convoca ao silêncio e à contemplação. Um magnetismo, como dizem os amigos, os admiradores e historiadores da sua arte.

João Silvério, curador, falou da extraordinária força de atracção da pintura de Michael Biberstein ainda na presença do pintor. Usou sabiamente as palavras para rasgar ao alto e ao comprido os limites das paisagens do autor. Apontou para cima, invocando o domínio da transcendência na sua representação pessoal da matéria, da luz e das sombras. Biberstein era um agnóstico radical, mas reconhecia uma demanda interior pelo céu. Sabia, porventura, aquilo que sabem os sábios das Igrejas orientais e ocidentais, quando dizem que o espírito santo, bom e pacificador, fala através do ateísmo radical dos homens contemporâneos.

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Seja como for, Biberstein morreu antes de conseguir pintar um grande céu que abrisse para o Céu infinito. Foi esse o sonho maior que já não conseguiu realizar, mas outros realizariam por ele. Por ele, no sentido de dar sequência ao seu projecto, mas também numa lógica de concluir a sua obra-prima pensando sempre nele e fazendo à maneira dele.

Michael Biberstein não sonhou sozinho e, na verdade, se não tivesse conhecido o encomendador, se calhar nem sequer teria sonhado com este céu. Mas um dia apresentaram-lhe outro esteta que andava à procura de quem pudesse cumprir o desígnio de concluir a obra inacabada do tecto monumental da Igreja de Santa Isabel. Construída após o terramoto de 1755, chegou aos nossos dias em tudo cheia de beleza e esplendor, excepto no tecto. Biberstein haveria de dizer que esta Igreja era “uma pedra preciosa guardada dentro de uma caixa escura com uma sombria tampa cinzenta”. Sabia do que falava, pois a luz das suas pinturas sempre foi a sua marca e o seu maior tesouro.

José Manuel Pereira de Almeida, prior de Santa Isabel, médico e padre, foi o encomendador da obra. Levado pela mão de amigos arquitectos e artistas, com apurado sentido estético, visitou uma exposição de Biberstein e deteve-se demoradamente em frente de cada quadro. No silêncio da sua contemplação e, quem sabe, da sua oração, deu um passo decisivo que ficará para a história. Desafiou o artista a visitar a sua Igreja e a olhar para um tecto de alvenaria em mau estado, tristemente pintado de cinzento escuro. Biberstein foi, e também ele precisou de olhar demoradamente de baixo para cima, para perceber a magnitude daquilo a que estava ser convocado. Aceitou o convite e fez mais: ofereceu o seu trabalho.

A história da pintura do tecto da Igreja de Santa Isabel é longa e teve um final feliz, mas passou por abismos de tristeza e momentos de grande incerteza. Aquela perpétua incerteza que paralisa e move, pois também a dúvida se conjuga nos dois modos. A história pode ler-se e ver-se inteirinha no blogue Um Céu para Santa Isabel. Vale a pena ver e ouvir a impressionante colecção de testemunhos, bem como o glorioso enunciado de factos.

Michael Biberstein começou por fazer o seu silêncio interior, dentro e fora do estúdio, mas também num templo ecuménico onde passou a sentir-se em casa. Depois precisou de fazer desenhos e ensaios, até deixar o seu céu projectado numa maquete na escala 1:8 que viajou para galerias nacionais e internacionais à procura de mecenas. Finalmente aterrou dentro da própria Igreja, onde todos podiam entrar para antecipar como seria o novo tecto. Biberstein haveria de conhecer antes de nós o verdadeiro Céu, mas deixou na terra a herança deste seu céu de maravilha.

Tudo está preso no mesmo movimento. Hão-de passar as gerações. Homens morrerão e matarão outros homens. A vida contemporânea pode ser atroz e a humanidade está minada de imperfeições. A intolerância e a estreiteza de espírito germinam e crescem como ervas daninhas, mas debaixo deste céu tudo parece certo e possível. Para muitos, Deus é um grande ausente, mas este rasgão azul que Biberstein nos deixou em Santa Isabel aumenta em nós a certeza de uma presença.